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30 dezembro, 2006

Verdade Convertida

Se não podes mudar o mundo,
muda o teu mundo!
Procura:
aquele pedaço da Felicidade
que julgas perdida;
no fundo
da Verdade
convertida.

Se não podes mudar o outro,
muda o teu outro!
Conquista:
aquele pedaço da Alma
que julgas contida;
no rosto
da Verdade
convertida.

Se não podes mudar a gente,
muda a tua gente!
Educa:
aquele pedaço da Luz
que julgas escondida;
na mente
da Verdade
convertida.

Se não podes mudar a guerra,
muda a tua guerra!
Respeita:
aquele pedaço da Paz
que julgas vendida;
à Terra
da Verdade
convertida.

Se não podes mudar nada,
muda o teu tudo!
Ama:
aquele pedaço da humanidade
que julgas mantida;
à entrada
da Verdade...

MENTIDA!


Rui Diniz

15 dezembro, 2006

O Sacerdote Dourado

Há uma espécie de conforto cego
nesta vida consciente
que se adapta a tudo mas resiste
ao evidente.

Bombardeados por informação,
perdemos a consciência inata
e fechamo-nos no interior da lata
que rotulamos
de nós mesmos.
Caminhamos sem olhar,
sempre consolados pelo lixo mental,
que qual uma droga,
destroi o pensamento
que tinha a hipótese de ser igual
àquele resistente mais em voga...

Não se questiona,
é proibido!
É sagrado!
O ensinamento do sacerdote dourado!
Pratica-se a veneração de mais uma Verdade,
mentirosa, aprisionante e audaciosa,
em nome de mais uma Liberdade!

Na mesma, como sempre,
quem pergunta é arrasado,
destruido, destituido,
arrancado!
Mas nós não sabemos
porque não olhamos,
não queremos,
é proibido!
É sagrado!
O ensinamento do sacerdote dourado!

É esta espécie de conforto cego
nesta vida inconsciente
que se adapta à corrente mas resiste
ao evidente!
É proibido!
É sagrado!
O ensinamento do sacerdote dourado!


Rui Diniz

01 dezembro, 2006

Arte Mágica

Luzes! Câmara!
Estou mortinho por Acção!
Quero fazer desta cena
uma revelação!

Sem um ramo de azevinho
tento devolver a esta arte,
a arte,
um verdadeiro caminho!
Oh hipnótica ilusão!
Esse fantasma do cinema!
Não te quero nesta cena
semeando a distração!

Farei desta arte, uma arte!
Uma arte sana, profana,
uma parte de um novo mundo
que se inaugura em cada homem!

Se nesta arte as estrelas
fossem astros, não os deuses
nem os homens que fingem,
nem os escribas da Casa,
nem os ardilosos mentirosos,
nem os pagantes saqueadores
da consciência...

seria esta arte, uma arte!

Arte sana, profana,
uma parte de um novo mundo
que se inaugura em cada homem!

Luzes! Câmara!
Estou mortinho pela Reacção!
Vamos fazer desta cena

A Revelação!


Rui Diniz

24 novembro, 2006

Candeeiro

Fotografia de autoria de Menina Marota

É à luz do candeeiro na tua sala
que encontro o resguardo
da minha própria sombra.
Perdia-me na minha noite,
vagabundo, derrubado, derrotado,
renegado pela minha concepção de mim,
ainda que a mim imposta...
Sempre tive escolha e não escolhi.
Sempre tive na minha mão
a segurança de que o Mundo
é outro e não este;
de que o véu é um véu
e não o escuro fundo
de uma existência funesta.

É à luz do candeeiro dos teus sonhos
que descubro,
enquanto a nossa carne se fricciona,
que a Alma afinal redescobre-se
a cada orgasmo,
pelo poder das feromonas que acciona
em nós, o entusiasmo de estar vivo.
Podia continuar perdido mas encontrei-te;
e contigo nesta sala das nossas noites
descobri o dia de sol que sempre quís ver;
rebolei nas concepções de amor e Amor
e nunca me pediste que voltasse
aos teus braços, nunca!
Nunca pediste que nos soldasse num compromisso...

E é isso que faz com que permaneça
o Desejo que nos mantém quentes,
noite após noite,
sem esperança,
nem vontade,
que amanheça...


Rui Diniz

17 novembro, 2006

Amor?

Amor?

Não o confundas com paixão,
qual poeta de indigências!

Amor é compaixão!
Não tem limites ou fronteiras,
nas preferências
ou ideias,
entre o meu e o teu
e o tudo!

Considera o que o amor
te deu,
contudo,
o Amor não é exclusivo
da pessoa que dorme
contigo.

Amor não é fogo,
nem tão pouco uma ferida.
O Amor é a saída
deste lodo!

Não te limites a dizer
que amas
e a passear a palavra "sempre"
pelas camas.

Tenta entender
que é quando Amares o tudo
sem a paixão presente,
nem dualismo absurdo,
nem a razão ausente,
que terás conhecido
o verdadeiro interior

dessa palavra,
"Amor"...


Rui Diniz

02 novembro, 2006

Eterna Despedida

Conhecer as tensões não significa
que não sinta.
Sou eterno contigo, como sempre tenho sido,
mas não fico pertencente à gaveta
de um assunto esquecido,
nem à caneta que desenhou em palavras
o sentimento permanente
das coisas que nos demos
e do muito que vivemos.

Entende que é por isto
que fumo;
este cigarro que me traz momentos
da paz contrafeita,
que como a Pessoa, liberta,
no seu fumo os pensamentos,
no meu momento sensitivo,
e competente,
d'alma desperta!

Nunca te abandonei, mulher ideal,
pertencente a um ideal
que não abracei,
concernente ao social "ismo"
que nos cataloga e condena.
Existirás para mim sempre
num memoriado sismo
até ao Advento.
És a mulher-missão
a quem a minha mão
devolve a Esperança
sempre nesta sua semelhança
mais contrária
ao teu lamento.

Chora, mulher,
chora de novo, neste momento
outra vez repetido,
nesta dádiva à tua vida
que ganhou sentido
e que com este alento
é renascida!
Serei para sempre esta marca
no teu leito,
e vez após vez
tatuarei na chama do peito
a memória monarca
que te fez!

Oh mulher...

Assino assim este poema como uma despedida
e as lágrimas inevitáveis,
de sal,
molham-me a vida,
humedecem esta voz sentida
de um julgamento meu,
escoam a culpa própria do processo
natural

de ser eu...


Rui Diniz




Eu, e portanto a Corte também, estarei de férias até dia 18.
Veremos que poemas trarei delas, se a inspiração me encontrar onde eu estarei!

27 outubro, 2006

Homem-Pai

Fotografia de autoria de Luís Garcês

Quando no teu nascimento
me perguntaste se te acolhia...
comprometi-me que sim.
Prometi que para ti seria,
desse principio até ao fim,
um homem em renascimento.

Aperta com os teus dedos
esta mão de um pai
que apenas por o ser de ti,
descartou-se dos segredos...
e a impureza que já vivi
é o passado que hoje cai.

Reconhece nesta minha face
o homem que te dá a mão hoje,
que te nuble nenhuma memória!
Não sou mais aquele que foge,
ruminando no medo a sua história
por um infortúnio que passe.

Dorme, meu rapaz, dorme bem...
aqui, no teu leito protegido,
semelhante àquele que nunca tive...
Descansa pela vida que aí vem;
que nela seja o meu olhar um incentivo
e meu novo nascimento, conseguido...


Rui Diniz

20 outubro, 2006

A Keith Jarrett

Clique aqui para ouvir excertos de Keith Jarrett enquanto lê o poema.


Enches o ar com tuas notas como sempre o fizeste...

vendeste-me ilusões em noites perdidas
e nunca me perdeste.

Deambulas pelas esferas como se soubesses voar
e voas, pelos caminhos pouco atravessados da vitória musical.
A tua derradeira sentença será como uma explosão
que rebentará os diques Minervinos de Bremen e Milão,
inundará Paris,
trará um diluvio a Bregenz e Viena,
diluirá Colónia
e em Tóquio, onde és Apollo,
entrarás em cena,
uma última vez,
como um triunfante musical deste Pólo!

No meu reino sempre ecoaste,
como uma bíblia iluminada, limpa de ignorância;
e na ausência e na abundância
tu sempre me saudaste,
no trinar dos teus dedos de Merlin
que alcançaram uma Vida Eterna
bem no fundo de mim...


Rui Diniz


Excertos ouvidos:
Over the Rainbow - Concerto de La Scala (Milão)
The Wind - Concerto de Paris
Heartland - Concerto de Bregenz
Part IIc - Concerto de Colónia

14 outubro, 2006

Desenlace

Percorre com as mãos a tua face
e considera o que somos...
tão pouco, comparados com o tudo,
mas um tudo só por si.
Há quem pense
que nada é mais cruel que este corpo,
que sofre, que sente,
que necessita,
mas nem a crueldade é independente,
nem assim se identifica!

Percorre com o pensamento o que dizes ser;
no corpo, milhões de átomos,
moléculas, células!
Na consciência,
uma miríade de condições
sem pertença.
A crueldade e o amor são um mesmo
não dualista.
Dependem um do outro,
nutrem-se, alimentam-se
e nós só os sentimos
porque ambos existem.

Percorre apenas com as mãos a tua face
e deixa-te estar...
levados pela corrente,
deixemo-nos revelar
p'lo desenlace!


Rui Diniz

10 outubro, 2006

Tai


O que nos mantem acordados é a fantasia
de que um dia
despertamos no Mundo Melhor....
mas esse mundo está aqui agora contigo, Tai,
por entre a dor que se sente e a dor
que acolhemos
no medo de perder o que de nós sai!

Não te agarres a uma vida de que não terás saudade
mas não larges a tua vaidade por ter
conquistado o Amor de quem não te conhece
e que com verdade envia ao teu ser
a serenidade que merece.

Afasta-te, Tai, aproveita.
Tens nas tuas mãos, no teu presente,
o presente da Paz refeita pelo choque que é esperado
mas que contamos sempre ausente...

Estamos demasiado próximos de nós, Tai,
demasiado próximos para compreender
a legibilidade implícita

de viver!


Rui Diniz

05 outubro, 2006

Fomos Dois um Dia

Fotografia de autoria de Inês Ramos

Éramos duas figuras rolando na escada da vida,
dois semblantes sem rumo, de alma vazia...
Assim éramos e assim fomos.
Assim nos encontrámos pela Magia do segundo
em que a surpresa vem na sensação de lá termos
sempre estado,
sempre presentes,
como que
sempre felizes.

Nada mais houve de importante nesse dia;
nem a causa que ganhei a um amigo das histórias,
nem as vitórias tuas no jogo do jornal;
passámos ao lado do banal e encarnámos a fantasia.
Os pombos serviram o pretexto,
mas fomos nós que deixámos palavras voar
e alojar-se no sangue,
qual carvão,
atiçando o fogo de uma paixão que será eterna porque morreu,
bem antes de falecer...

Anulados pela vida, encontrámo-nos,
no fim de mais uma tarde vencida,
ultrapassada pelos meandros de quem se desenrasca
com um café e um cigarro
e se alimenta do milho atirado
aos pombos-cegonha do nosso amor nascido.
Eu sempre soube que lá estarias;
nas escadas da maternidade
e do túmulo do nosso Momento,
perpetuado apenas na eternidade
de um pensamento...

Vivemos anos em horas...
por isso não estranhei o teu convite
para ir até onde moras
aguçar ao teu corpo o apetite!
Encontrámo-nos aí na tal Magia do segundo
em que a surpresa vem na sensação de lá termos
sempre estado,
sempre presentes,

e agora,
sempre ausentes...


Rui Diniz

29 setembro, 2006

Menina

Fotografia de autoria de Maria Paula, enviada por C.L.

Menina princesa,
menina traquina,
de alma acesa
que tanto ensina.
Frágil, franzina,
a morena menina
com demais certeza
de ser pequenina!
Mártir que choras
no quarto cinzento
e sem fé imploras
o fim do tormento!
Chora menina,
chora que o vento
te leva o lamento
p'ra álem da surdina.

Vives memórias
p'lo futuro que vem,
vives histórias
não sabes de quem!
Menina bonsai,
já nunca enxuta
desde que o pai
lhe chamou de puta.
Tu nunca lutaste
nem sabes fugir,
mas nunca deixaste
de saber sorrir!
Menina graúda,
sorri que o tempo
limpa o lamento
à tua voz muda.

Teus olhos, menina,
alagam tristeza
mas na tua sina...

ganhaste a pureza!


Rui Diniz

27 setembro, 2006

A Luiz Gaspar

Hoje é dia de Lugar aos Outros #20. Dia adequado para homenagear o trabalho do Luiz Gaspar!



Como te sentes meu amigo,
sabendo que por tua Voz passam os Sonhos da gente
que investe a ilusão da vida no papel e virtual?
Que transportas pelas nuvens de uma escuta
os vislumbres divinos que dão luz a quem não a sente
por moldar as palavras nessa tua dedicação floral?

Como te sentes meu amigo,
sabendo que mudaste a vida de tantos que nem sabes,
que mudaste o patamar de direito à aspiração?
Ascendes muitos, nobre amigo,
àquele reino que só em cada humano, sem entraves,
se atinge sem dores uma pura libertação.

Como te sentes meu amigo,
saboreando o pão que sabe a pão e a ginja raposina,
partilhando a sensação de que nada cai mal?
A tua toca é um refúgio
dos que na sua vida por sentido, sorte ou por sina
têm de fugir à aprisionante engrenagem social...

...

Ah... mas falando por mim,
sou um honrado e um sortudo!
Fiz-te de um sonho meu, convidado
e tu chegaste
e deste tudo!


Rui Diniz

20 setembro, 2006

Fim de mais um dia

E enfim, aqui estou de consciência,
na fila do fim de mais um dia,
entre as cornetas da impaciência
e os batuques de melancolia...

Nesta estrada tão fria, vê-se a vida....
uns agarram-se a ela como a um lugar;
uns outros aguardam nela uma saída
enquanto se debatem, procurando amar...

Soa mais um aviso; "Erraste, vilão!
Roubaste-me uns segundos de tristeza!
Preciso tanto de alguém que me estenda a mão...
mas só insiro no mundo uma raiva acesa!..."

Ai... aqui estou eu de consciência...
no coágulo do fim de mais um dia,
entre os gritos impacientes por clemência
e os batuques de uma fome
de alegria...



Rui Diniz

08 setembro, 2006

Monogamia

Como seria
se tudo isto não o fosse
e a monogamia
nada mais que uma ideia?

Quererias, meu doce?

É verdade que
este mundo é uma aldeia
de poderosos intrometidos,
um bando que negoceia
em lojas sem montra
as regras dos vencidos!...
Mas se nenhuma regra fosse contra
e a moral, ideia que não importa,
já serias tu para mim outra
e o meu desejo,
coisa morta!


Rui Diniz

O vento da Verdade

O vento que passa nesta herdade
é o vento que dela espalha a Verdade.

Ele sopra, brando ou imerso em fúria
e não se importa com a nossa incúria!

Este vento que aqui passa, passa porque o sinto;
não houvesse eu nem formiga, nem mosca, nem nada,
o Universo inteiro pensaria que minto!...

...Mas eu deixo que a verdade do vento
me invada!


Rui Diniz

04 setembro, 2006

O Dia Antes

de Carlos Calado

Texto lido no último Lugar aos Outros. Apresento o meu amigo Carlos Ricardo Calado:

"O Carlos Calado, ou apenas Calado como os mais próximos o conhecem, nasceu já com um teclado e rato incorporados, tendo-se imediatamente ligado ao monitor da vida, configurado a sua interacção por ethernet, tendo sido por diversas vezes o host de uma rede enorme de amizades que espalhou por aí e testou várias ideias periféricas por USB. Ora uma dessas ideias que instalou no seu sistema operativo (e que creio, por muito que tenha desinstalado, permanece como um vírus dificil de remover) é a da escrita criativa. Lembrava-me eu vagamente que este meu amigo de infância que tinha nascido para e com a informática, hoje empresário nessa área - função que diz roubar-lhe todo o tempo - dizia eu que me lembrava vagamente que ele tinha passado por período de escritos introspectivos e confirmei, há bem pouco tempo, que o génio da literatura soprou-lhe ao ouvido alguns códigos que programaram textos maravilhosos. Sabendo eu que o tempo que se tem é o tempo que se dá a nós próprios, apresento-te, meu grande Amigo Calado, ao mundo do Estúdio Raposa para que sintas, espero, o incentivo de te dar tempo para que esse génio que aguarda pacientemente em ti possa cantar."

Leia "O Dia Antes" aqui e ouça-o no Lugar aos Outros #17 do Estúdio Raposa.

01 setembro, 2006

Morrer!

Desejei de novo morrer!

Nenhum acto é generoso
e a inacção é ela assim
como um Amor preguiçoso
num fundo poço
de visões sem fim!
...Que esta Alma em alvoroço
irá de novo nascer!

Renascer é só morrer!

De nada valem os intervalos
por uma Luz que nunca chega
e nos convida, intrometida,
a viver sonhos e largá-los
ao sopro da brisa cega
que passeamos cada vida!

Todo o ser tem de morrer!

Que queres de mim, escuridão?
Existes tanto quanto eu!
Alimentas-te dos que te dão
em todas suas formas de ser
um nobre pedaço seu...
... para no fim,


morrer!


Rui Diniz

29 agosto, 2006

Cavalheiro

Hoje, fumei um cigarro.
Emprestaram-me o isqueiro,
deram-me o invólucro branco-laranja,
e foi com a alma em franja
que cheguei à sala do fumeiro
e entre a impestação alheia por catarro
me esfumarava inteiro.

Entrou uma mulher;
"Tem lume?" - mordendo o cigarro ao meu fogo ofertado
"Sim" - passando-lhe para a mão o mecanismo emprestado
Surpresa, não se conteve; "Julguei ser um cavalheiro!"
Rindo-me retorqui, com o meu ar mais matreiro:
"Que maior confiança deposito que ter na mão o meu isqueiro?"

É que nestas convenções de cavalheiros
escondem-se sagazes predadores de atenção,
mas são os que não procuram ser certeiros
que guardam os melhores sorrisos
no coração!


Rui Diniz

02 agosto, 2006

Serpente

Se o que sensoriamos
é apenas um infinitésimo do infinito,
como podemos afirmar ser verdadeiros?

Não! Somos é estrangeiros em todo o lado,
escamas de uma serpente
que morde o próprio rabo!

Não morre esta serpente,
gira eternamente, que nem um carrocel
e nós com ela, crianças,
colados à sua pele...

Surgirá o dia em que,
continuando a serpente girando,
me solto dessa pele ilusória por tanto tentar
e de fora,
certificado que a serpente não existe,
afagarei todas as escamas,
iluminarei a penumbra
que as faz permanecer
neste destino
tão triste...


Rui Diniz

Encontro

Encontramo-nos pelo Caminho.
Sem chá, sem cerimónia,
sem condicionantes ou ilusões.
Apareceremos na memória de um evento
que nunca terá lugar,
sem momento para acontecer,
nem tempo para acabar.

A sala estará vazia.
Não será rica nem pobre,
feita apenas do Ouro Nobre
cujo brilho não vicia...

Até já!
A eternidade desta espera
cabe toda
num segundo...


Rui Diniz

25 julho, 2006

Moinho do Malhão


Montanhas erguem-se a toda a volta
como se daqui uma planicie de céu,
de azul imenso, invertido,
me puxasse a caminhá-la.

Caminho daqui.
Voo com as asas da não-existência
e nada sinto;
nem o vento, nem a decadência
dos que daqui só vêem paisagem.

E digo isto sem orgulho!
Reflicto e compreendo que a não-existência
da planicie azul imensa, deste lugar,
de mim próprio, deste pensamento,
é exactamente a Luz que me devolve a Paz,
o carro parado
que ruma ao firmamento...


Rui Diniz

23 julho, 2006

A Manhã Chorou

Hoje, a manhã chorou.
O despertar do novo dia
cambaleou, deprimido
e encostado ao meu ouvido
segredou-me as mágoas do Sol.

"Como ele gostaria de brilhar sobre outro mundo!"
- disse-me a névoa que o antecede, soluçando -
"Como ele desejaria espalhar seus raios num planeta brando!"

"De nada vale, Manhã" - respondi eu a sorrir -
"Também a chuva dos teus olhos de hoje o cobre...
e nem assim deixa ele de existir!"


Rui Diniz

30 junho, 2006

A Lição

Temos um professor e uma turma de alunos. Após os exames e devidas avaliações, o professor atribui as notas finais. João, um aluno, pede explicações pois não compreende como ele, que se aplicou tanto aos estudos e que tem a matéria na ponta da língua e bem compreendida, teve a mesma nota, 13 valores, que um outro, o Bruno, que se desleixa com os estudos, não presta atenção à aula e falta com frequência. O professor, sabedor das voltas e curvas do modus operandi da criança interior, pede que o aluno o acompanhe para uma sala à parte e explica-lhe:
“João, tu és mesmo o melhor aluno da turma. Para além disso, és calmo e sereno, sorris sempre na aula. Sempre demonstraste uma atenção excepcional e uma compreensão acima da tua idade. Diz-me, o esforço que fizeste nos estudos foi para agradar a quem em ti investe ou para obter reconhecimento do teu trabalho?”
“Os dois: eu quero agradar a mim próprio, ao professor, aos meus pais, aos meus colegas e ter o devido reconhecimento, fruto desse esforço.”
“Certo, João. Diz-me outra coisa: é verdade que os teus colegas te pedem muitas vezes ajuda para os trabalhos de casa e para os exames?”
“Sim, professor, é verdade.”
“E sabes, João, que o Bruno sente inveja de ti por não ser como tu?”
“Já tinha reparado, mas nunca pensei muito nisso – ele é sempre tão bruto com as pessoas e não liga nenhuma à escola nem aos pais nem a quem se aproxima dele com amizade… que culpa tenho eu de ele ser assim?”
“Absolutamente nenhuma João. Tu apenas estás na posição correcta para o ajudar. Queres ajudá-lo?”
“Sim, queria que ele não fosse sempre assim para com os outros…”
“…nem para ele, não é?”
“Sim, professor, ele também não é feliz assim.”
“Muito bem João. Agora verifica isto: tu tens o reconhecimento fruto do teu trabalho nos pedidos constantes de ajuda para os deveres escolares por parte dos teus colegas. Tu sabes por eles, por ti e por mim, que és o melhor aluno. Agradas aos teus colegas por isso e pela tua serenidade. Agradas-me pelo mesmo. Agradas aos teus pais porque eles sabem que te educaram com sucesso e que grandes coisas te esperam, mesmo que não escolares – sabes que a vida tem a sua forma de nos presentear. Não agradas ao Bruno apenas porque ele não vê, por todos os factores que rodeiam a sua vida, que o que tu tens é apenas um fruto de uma semente colocada em terreno fértil e devidamente regada e acarinhada. Por isso ele tem inveja. Por não saber que esse fruto, essa consequência, essa paz, também pode ser dele.”
“Sim, tem razão…”
“Se lhe deres a tua serenidade e sorriso perante uma aparente injustiça em que ele se sente ao teu nível finalmente, dás-lhe o braço para ele se agarrar e pisar terra firme finalmente.”
“Compreendo, professor, mas porque me pede esse sacrifício?”
“Sacrifício?” – o professor sorri abertamente – “Fecha os olhos e vê dentro de ti o acontecimento, sente-o e diz-me, do topo da tua serenidade, se é um sacrifício.”
João fecha os olhos e assim fica durante um minuto inteiro. Sorri, como quem acabou de nascer para um dia num paraíso qualquer, e diz ao professor ainda de olhos fechados:
“Não, não é sacrifício algum. É a minha função, a minha missão.”
O professor ergueu ligeiramente o braço, de palma aberta apontando carinhosamente o caminho de volta à sala de aula.
Chegados lá, o João disse:
“Peço desculpa. Sou de facto merecedor desta nota, tal como o Bruno.”
Bruno tentou conter uma expressão de espanto enquanto o resto da aula entrava em alvoroço, se revoltava contra o professor e tentava convencer o João de que a sua afirmação estava errada, ele era merecedor de melhor nota! O professor manteve-se em silêncio, calado, olhando os seus papéis na secretária. João manteve a tranquilidade, o sorriso e olhou para o Bruno com total abertura e paz interior – o que quer que ele fizesse naquele momento, seria acolhido com total aceitação. Bruno equivocou-se por uns instantes - não compreendia porque nascera nele repentinamente naquele olhar uma sensação de leveza nunca antes experimentada. A aula já se tinha calado, contemplando a estranheza do olhar entre aqueles dois colegas tão antagónicos entre si, tão opostos, mas que no entanto, ali no silêncio, eram tão iguais. Finalmente, na face do Bruno desvaneceu-se a expressão de espanto e resistência e ele levantou-se e disse com um sorriso nunca antes testemunhado por ninguém naquela escola:
“Não, Sr. Professor. Dê a nota que o João merece pelo seu trabalho. Eu, por outro lado, tenho passado pela vida completamente embrenhado na ilusão de que existem pessoas melhores e pessoas piores. Eu apenas preciso de encontrar o meu lugar. Dê-me a negativa que mereço e para o ano, tentarei fazer melhor.”
A turma inteira sentiu aquele momento envolvê-los e ficaram mudos e quietos. O professor olhou para o João primeiro, num olhar cúmplice, e depois encarou o Bruno dizendo apenas:
“Assim farei, amigo Bruno. Assim farei.”


Rui Diniz

27 junho, 2006

Maçã d'Alquimia

Fotografia enviada por Margarida Luna de Carvalho. Poema escrito para a iniciativa "Mês da Maçã" do seu blog.

Já não minha maçã mergulhada,
maçã que serpenteias no meu intimo ainda,
banhas-te agora na beleza parada,
no amor fiel, no troféu da vida
conquistada de mim...

Que caiam agora a teus pés todas as armas!
Que me renda, derrotado, que me venda,
que me mate e ressuscite, que seja outrem,
que não quero mais ser eu, não quero mais
sem ti...

Vendo-te aqui sorrindo ao lado dele,
consumo o veneno letal que me matará o ego,
o veneno sorridente que acompanha o teu olhar
e o vê desvanecer-se, diluir-se, entregar-se a ele....

Que morra aqui já e ressuscite!
Que caiam agora a teus pés todas as minhas armas!
Que me renove, transparente, à chuva das lágrimas...
Que vivas para sempre nesse altar, sorridente,
para sempre amada, para sempre... até morrer
e ressuscitar
e querer
e amar
o que então houver...
de mim...


Rui Diniz

15 junho, 2006

A Padmasambhava


Ajudai-a Senhor...
Ajudai-a que não fui capaz.
Derramai sobre ela vossa chuva cristalina,
Poupai-a da vida triste que tanto lhe ensina.

Ajudai-a Senhor...
Ajudai-a que não tive força.
A ela que se esmola contorcida, abandonada
Salvai-a da vida cega à beira de uma estrada.

Ajudai-a Senhor...
Ajudai-a que me escondi
Agachado num ego incompetente
Por demais ameaçado pl'os sons da mente.

Ajudai-a Senhor...
Ajudai-a que não o fiz.
Envie-lhe um Ser Ascenso que lhe aponte
Uma estrela de Paz eterna...
no seu Horizonte...


Rui Diniz

23 maio, 2006

Requiem do Nómada

Fotografia enviada por Maria Eduarda Dantas

Andei por tanto tempo à procura de tanto
para neste quarto de hospedaria
encontrar o meu ultimo poiso.
O que procurei foi a cura para as mágoas
que este fogo intenso de frustração sem fim
de quem não sabe o que procura
criou em mim...
Fuga das mágoas que magoaram os pés de tanto procurar,
pés que tentava controlar, mas que queriam dor!
É que a dor faz respirar...!

E eu procurava, incessantemente.
Obedecia-lhes cegamente.
Nunca souberam aproveitar o descanso de uma carpete macia,
nem de se deixar ficar nús, num só sitio,
por mais que uma noite suada...
Subi degraus até ao Céu, ceei com estrelas e anjos...
Desci a escadaria do Inferno onde queima o terror psicótico!
Nunca soube parar.
Nunca soube dar-lhes a voz de comando, aos pés,
aos sapatos, que sem retorno levaram à exaustão
da vida neste corpo...

E é um corpo cansado que se apresenta
no chão frio de pés nus hoje...

Na ultima força, deposito os sapatos carinhosamente,
sabendo que foram seres de ego próprio
que me ajudaram a fugir de mim,
e deito-me na cama desfeita,
fecho os olhos e parto,
sem pés,
sem caminho,
rumo ao infinito...


Rui Diniz

17 maio, 2006

Milheirais

Fotografia de Margarida Luna de Carvalho - Poetiza que também teve a honra de ter um dos seus textos lidos pelo grande Luís Gaspar! Ouça-o aqui.

Parabéns Margarida!

Tantas vezes dançaste para mim no milheiral
e de tantas vezes recordo todas!
Tantas vezes me levaste ao teu Mundo
onde largava na atmosfera o meu pesar eterno
e me descobria Feliz, como num sonho impossível,
na pele de seda do teu abdómen, na sede dos teus seios,
na vibrante sensação de ser inteiro, de,
por um segundo, ser Deus...
como tu foste! Ah....
A tua dança era o baile das estrelas!
Tinhas em teus olhos as esmeraldas puras, tão puras
que o reflexo neles da Luz no teu coração fazia-os Faróis
à ondulação do mar do Prazer e do Amor duro dos egos!

Mas que importa se éramos duros egoístas?
Que importa?

Se te amei e se me amaste no milheiral tantas vezes,
tantas vezes que recordo todas com a Paz que só a saudade traz,
porque não posso parar diante deste altar e rezar-te uma homenagem,
perante os tetranetos geracionais das ancestrais espigas
que nos acompanharam e te acompanharão sempre,
mesmo que na minha mente, mesmo que sem nada,
onde quer que estejas, onde quer que perdures?

Em quaisquer que sejam os milheirais
onde dances deitada agora e sempre,
abençoada sejas por trazeres vida
a quem só perdura no seu sono indolente!


Rui Diniz

11 maio, 2006

Ode aos Declamadores

Inspirado pelo excelente trabalho de Luís Gaspar no seu audioblog Estúdio Raposa (que já tinha mencionado no post anterior) criei este blog para apresentar ao mundo o que antes apenas uma "gaveta informática" e algumas pessoas conheciam: os meus textos.
Pois o Luís continua a inspirar-me. Quando eu considerava contactá-lo para pedir-lhe autorização para fazer uma colectânea das melhores leituras nas Palavras de Ouro, após ouvi-lo recitar na edição número 41 "A Tabacaria" de Àlvaro de Campos (que para mim é O POEMA) de uma forma que me leva a confirmar a consideração que já trazia comigo de que muitos ainda estudarão o seu trabalho de leitura poética, como referência histórica no futuro (e não estou a exagerar, pelo menos não dentro de mim - é uma afirmação verdadeiramente alta e nobre e lúcida!), o Luís convidou-me a apresentar-lhe um texto para leitura sua. Em relação a isso está tudo dito no anterior post, mas a sua declamação do meu poema foi tal e mexeu de tal maneira comigo que escrevi, naturalmente e sem pensar, os versos que vos exponho aqui hoje; em homenagem aos grandes artistas declamadores que como o Luís Gaspar, fazem das palavras Ouro!


O Luís Gaspar, o artista, transformou este minério em Jóia. Ouça aqui:
Lugar aos Outros #4




Não há poesia sem declamador.
É o declamador que faz a poesia; é ele quem constrói o mito,
é ele que lê o Ouro nas palavras que uns lêem vulgares,
outros nem tanto, seja em voz alta para os outros
ou para si em pensamento...
sim, porque não se pode declamar no pensamento?
Nada o impede.
Na ligação que tudo une, um pensamento faz a diferença!
Destrinça-se dos outros, marca a cadeia quiçá infinita
de rolantes modas, media e medianas...
Mas só um pensamento, dito ou pensado,
na pureza da postura de quem se faz mártir por opção
e decide ser veículo para o que tanto embebedou o poeta
pode ser marcante, pode de facto ser divino!
O declamador é como um ourives.
Ele labuta dentro de si os fios da sua própria existência
fundindo-os com os da existência de outrem
em jóias caras distribuídas a troco de nada.
O poeta dá o ouro cru, a pedra lascada,
o declamador dá tudo, a vida,
a voz, o pensamento, a alma
e no fim é quem fica com nada.
Fica com nada porque já de seu tinha dado tudo...
ao poeta.

O poeta é o mineiro,
o declamador é o artista.

Bem ditos sejam os artistas!


Com humilde agradecimento,
Rui Diniz

09 maio, 2006

Vulcões

Luís Gaspar, autor do Estúdio Raposa, fez-me chegar um convite para participar com um texto para ser lido por ele numa nova categoria do audioblog... convite que me honrou imensamente!
Decidi-me por este poema que decifra um momento bem real de um Amor que foi eterno enquanto durou (como apregoava Vinícius de Moraes).
Obrigado, Luís! Está perfeito, emocionaste-me totalmente...


Clique aqui para ouvir: Lugar aos Outros #2




Uma brisa suave anuncia-nos o Céu
quando em êxtase cubro o teu corpo como um véu.

Que na troca de olhares, no sorriso cúmplice
tudo o que somos se resume.
Quando nada se diz e o suor escorre
e o teu prazer pede que o exume
os beijos falam...
e o medo morre!

Aí, o vulcão que te liberto mergulha-me;
minha boca sente na tua todo o mel
dos favos ricos, da tua sede, do pincel
com que a tua mão pinta arrepios na minha pele.

A tua lava envolve-me, ardente e segura
e deixa do meu pranto a fonte enxuta
e quando ao acaso o teu verbo augura
entrego-me extático sem dar luta!

E é aí, nesse mesmo momento
em que partindo da tua face benzida a prazer,
do teu espirito já errante, viajante, voador,
que o meu se funde à tua Paz com um grito que vem ser
como o de Ipiranga, libertador!

Voamos para além do Céu!
Voamos para além da dor!
Voamos para viver o que o destino nos investe...
A Paz celeste...
O nosso Amor!



Rui Diniz

28 abril, 2006

Minhau...

Fotografia de Alana Araújo, enviada por Roseane Pereira de Souza

De onde vim?
Queres saber de mim?
Cheio de ego absurdo,
sou altivo e peludo;
como chamam por mim?
Tareco ou Moisés?
Miiinhão! Que o caminho é dos pés,
e se aterro num quintal
é a comida que é igual
à fome dura que me fez!

Noutro dia chamei "pechincha"
a uma gatinha que reliiiincha,
quando sente em sua sela o manto
do meu trote bravio e manso!

Mas miiiinhaaaaau...
Sou um gatinho fedorento...
sou um gatinho pachorrento!
Paciente com a vida,
inconsciente da saída!
E se noutra vida não for gato não sei...
se não serei de uma selva humana
El-Rei!


Rui Diniz

11 abril, 2006

A Mulher da Máscara Rosa

Esta pequena história é um pouco mais completa. Coloco agora um pedaço que faltava:



Rodando a chave com uma só mão, segurando na outra a cadela pequena numa trela, Pedro abre a porta e entra em casa com um suspiro... da cozinha e da sala entra energicamente a luz do dia lá fora, mas uma vez cá dentro, regressa a escuridão. Não que hajam problemas com o quadro eléctrico, há candeeiros suficientes para bombardear as paredes brancas de raios de luz hertziana e também há dinheiro para as lâmpadas... mas mesmo assim está escuro. Muito escuro... Fecha a porta atrás de si e abre cuidadosamente o compartimento do contador, onde coloca a trela. A cadelita, companheira mais que tudo, segue-o como sempre, mordendo-lhe os passos até à despensa onde o observa a descalçar os sapatos, até à cozinha onde ele enche uma caneca de café sem açúcar e lhe dá um biscoito quando ela se senta e sorri, acelerando o trote para subir ao sofá arranhado quando o seu Pai abre a porta do escritório finalmente. Já lá ia quase um ano desde que deixou de trabalhar de noite, noite após noite, sem dias, sem Sol... tinha reconquistado a vontade de falar com o vento, de afagar uma flor bonita por qual passasse, mas aqui, na sua caverna, seu castelo, sua fortaleza de canhões apontados ao belo Tejo, a Noite permanecia.
Liga a televisão junto à varanda e carrega no botão do computador ao sentar-se atrás da secretária de madeira clara, guarnecida de um vidro no topo, já riscado pelo abuso, coberta de CDs e papeis a que o uso já não convoca... uma forte mesa, uma bengala, mais um grandioso legado do seu irmão. Estava de folga num fim de semana... não era raro, mas era infrequente o suficiente para sentir-lhe o gozo... dentro da medida possível. Afinal, continuava a sair apenas de casa para passear a Glenny e uma ou outra vez em que alguém o socorria sem saber, mesmo que o enviasse para o mais tedioso programa... há coisas que não mudam por si; nem por si, nem por ele. Precisava tanto de encher o coração de vez, como aquele café pedia um cheirinho de whisky.
“Hmmm, mas isso posso remediar...”; Carrega no ícone do programa de conversação escrita na internet e levanta-se, aproveitando enquanto tudo arranca automaticamente, para ir à “ala norte”, à sala, pingar o seu café com um blend corrente... que o seu malte de estimação, não se gasta assim. Por trás desse ouro jovem e envidraçado sorri-lhe um amigo celta, um druida, na bela garrafa de aguardente de generoso que tanta companhia lhe fez... aos pingos!... que disto aqui, faz-se pouco e goza-se muito! Ajeitou a vasilha de litro como que abraçando vigorosamente o seu amigo, como se ele sentisse naquele instante a palmada nas costas de agradecimento... pois nunca lhe agradeceu com conveniência: nunca soube como. Enclausura de novo as garrafas, fecha a porta vidrada da sua sala e atravessa o equador do castelo, até ao escritório a sul, para depositar a caneca no pano em frente ao teclado e acomodar-se, puxando um cigarro e acendendo-o de seguida. A sua mãe dizia-lhe vezes sem conta que “na televisão fala-se tanto do mal que o tabaco faz”, mas não havia com que se preocupar que isto aqui é só um cigarrito de vez em quando... os “quandos” é que são variáveis de tempo bastante versáteis... e com tendência a encolher, como que lavados a altas temperaturas por um sangue incandescente, mas mesmo assim, quase inerte. Fumar este cigarro lembrou-lhe outros; os da linda mulher rosada com quem partilhava travessias do rio...

Era mais uma manhã, rotineira, despertada ao som da rádio-jornal e do telemóvel estridente que assegurava a quebra do sono, qualquer que fosse; tranquilo ou recheado de eventos. Atrasou-se um pouco, pelo sono, e logo após comer os cereais com leite e colocar as sandes congeladas na sua boteira de aspecto infantil (mas prática, de facto) atirou um biscoito à Glenny e saiu de casa.
“Merda mais a esta malta toda!” – bufava Pedro atrás do volante. Só queria chegar ao Pragal, à estação, e não queria sequer ter alguma coisa a ver com a multidão que todas as manhãs pára na ponte a ouvir rádio, buzinas e insultos, que infelizmente tinha de seguir parte do mesmo trajecto que ele. O rádio ainda vá que não vá, agora o resto da miscelânea é demasiado stress para uma hora tão madrugadora...
Lá foi furando caminho até ao estacionamento. Fechou o vidro, retirou a chave da ignição e saiu do carro, trancando-o. Ainda ia a tempo de apanhar o das 9 e 17... mas chegou atrasado para a mulher da máscara rosa. Desapontado, deixou-se levar pela escada rolante de acesso à plataforma da linha 4. Do maço que levava no bolso da camisa puxou um cigarro como que por castigo, uma punição por ter-se deixado atrasar e assim ter pela frente uma viagem sem a doce vergonha da mulher atrás do enfeite.
Ah... essa mulher. Viu-a pela primeira vez numa manhã em que por mero acaso chegou mais cedo, a tempo do comboio da hora e 9 minutos, enquanto esperava perto da coluna das escadas de pedra quase por baixo do mostrador do destino e horário do comboio seguinte. Ainda nem a tinha visto, foi preciso o comboio aproximar-se da paragem para ela avançar e de imediato tirar-lhe o fôlego com a sua expressão incomodada e a forma nervosa, apressada e mesmo dolorosa com que fumava o seu cigarro. Figura fina, bem composta, de costas direitas e cabelo escorrido, arruivado e muito bonito. Por trás de uma marca de nascença grande, bem rosa, uma face dotada de magia e beleza feminina vivia escondida. A máscara não o impediu de a ver bela... ou melhor: de a ver, ponto final. Pedro leu-lhe nos gestos a intenção de se magoar, de fazer mal a um corpo, especialmente a uma cara, que a atormentava de nascença... e assim engolia mais fumo, mais rápido, esperando que o mais urgentemente possível os efeitos nefastos a atingissem finalmente e acabassem com a sua vergonha. Mas Pedro não via razão alguma para esconder uma beleza tão única e desde então, fez questão de todos os dias chegar a tempo ao comboio que passava minutos mais cedo só para a ver, mas falhou neste.
Submergido no ultimo terço do cigarro (já não denominado “light”), quase não deu conta que aquela mulher que lhe preenchia a mente subia pelas escadas rolantes. Apercebendo-se, Pedro sorriu sem se conter. Atrasou-se naquela manhã sem propósito e chegou a tempo mesmo assim... pois ela atrasou-se igualmente. No seu olhar, que entretanto cruzara o de Pedro, notou que já estava habituada à presença deste rapaz de cabelo comprido, óculos e feições de menino, deixando assim transparecer uma satisfação interior, apesar de muito tímida. Colocou-se imediatamente ao lado dele, semi-sorrindo, com o seu sempre presente cigarro fumado com avidez soluçante. Quando o comboio chegou, uns eternos minutos depois, os dois seres contentes, que não tinham conseguido quebrar a timidez e olhar-se nos olhos, entraram na mesma carruagem, na mesma porta, ficando de pé no mesmo compartimento. Ela, como costume, colocou-se perto à saída, num canto, de forma a observar a paisagem... e a esconder a cara com a vergonha aguçada. Ele, pouco atrás dela... e também como costume, sorrindo (hoje mais evidentemente que o normal) enquanto olhava fixamente a nuca dela, falando-lhe telepaticamente. Costumava contar-lhe eventos do seu passado ou falar-lhe de algo mundano (nunca soube bem como conversar com uma mulher desconhecida, mesmo que telepaticamente), mas naquele dia disse-lhe que era linda e que estava feliz por ela ter-se atrasado um pouco e partilhado com ele a sua vergonha encantadora. Pedro nem imaginava como tudo iria mudar...
Um ou dois meses mais tarde dessa ultima partilha, a mulher volta a cruzar-se, no mesmo comboio, com ele. Mas muito se alterara na sua expressão. Já não olhava envergonhadamente janela fora mas lia um livro que Pedro nem teve consciência de se aperceber do titulo. A sua cara irradiava luz e confiança, à vontade, calma... força. Bem no cerne de Pedro nasceu um nó e uma tremura no abdómen. Teve medo. Teve por ele e por ela. Por ele porque não era, ele próprio, um poço de confiança; temia desgostar com o seu olhar os olhos de uma mulher bonita. Tinha medo por ela pois jamais queria causar a sensação inversa do corar de uma face feminina quando sente que é observada por beleza. Coraria? Pedro, sentia, nunca iria saber...


Rui Diniz

21 março, 2006

Morena Maria

Quando o vento que bateu em teu rosto
regressou ao seu quartel envelhecido,
terá levado consigo a dor, o acre gosto
que sufoca a foz do teu sorriso.

Talvez pelos teus lisos fluentes
tenham já passado as doces bagas,
que em seu outono, incandescentes
afagavam a tua praia de areia turva.

Mas mais não sei, não sei...
não sei olhar mais sem ser lido;
os teus duros cristais magos reviram-me...
e eu assim não resisto, entrego-me rendido,
sem dúvidas, sem questões,
como um poema que recitado, é,
com carinho,
retribuido...


Rui Diniz

03 março, 2006

Amor-Ego

Quero-te ponto.
Quero o teu sorriso para mim,
os teus olhos a ver-me,
a seguir meus sorrisos!

Quero o teu gosto a adorar-me,
os teus lábios a estalar
mordidos pelos dentes,
por tanto também quererem tocar os meus!

Quero as tuas mãos;
nas minhas, no meu corpo,
no meu cabelo, na minha alma!
Quero as tuas flores junto ao meu coração,

por baixo da armadura!

Quero a tua atenção!

Quero-te!



Rui Diniz

10 fevereiro, 2006

O Tom da Dor

Sem que tenhas de entender o porquê
de ver o mundo noutra cor,
sabes que o que se vê
nem sempre tem o tom da dor?

Perco-me nas linhas torcidas, trocadas, desta comunicação
com o interior da natureza que é minha e só por mim compreendida.
Se do teu toque já não sinto calor, nem a doçura de um beijo ao luar,
agora só me resta a saudade do que poderiamos ter vivido.

Sem que tenhas de entender o porquê
de ver o mundo noutra cor,
sabes que o que se vê
nem sempre tem o tom da dor?

Fui monstro duro e cruel, carrasco de um coração enganado.
Fui homem, fui calor quando o teu tempo era chuvoso.
Julgas poder julgar com a certeza de Ser perfeito,
mas irás julgar-te assim, quando à sombra regressares?

Olha-me agora e vê;
nem tudo o que perdeste está igual…
Mas se hoje morro em ti,
amanhã, quando morrer,
chorarei menos sal…

Sem que tenhas de entender o porquê
de ver o mundo noutra cor,
sabes que o que se vê
nem sempre tem o tom da dor?


Rui Diniz

23 janeiro, 2006

Perguntas

Quantas formas existem de sofrimento?
Uma Rosa bela por um só momento.
O Céu azul, o Sol cadente, o Firmamento;
frios, se o Amor se contorce ao relento.

Será Feliz quem na calma sentir Paz?
Quem se resigne à dor que a Luz traz
e se apronte a despir o que nele jaz
que resista ao açoite... zás!... zás!?

Livre é só mesmo quem Ama livremente!
Quem p'lo seu Ser do outro não é temente,
aguando em seu deserto o respeito por quem sente
e mordendo o Beijo Quente, insistente,

aquele
que nunca mente!...


Rui Diniz

06 janeiro, 2006

Intervalo

Sento-me. Pauso a azáfama e vejo-te.
Olhas-me com aquela ternura que me torna rendido...

Servido numa bandeja de paz que tanto te apraz,
acendo o cigarro com os teus olhos e o fumo transpira-me.
Apoio o teu corpo e tu encostas-te;
o teu respirar no meu ouvido... sussuras carinho.
Aconchegas a tua face na minha,
numa dança de maçãs doces e apeteciveis
e sem pensar, minhas mãos sondam teu riacho,
beijam-lhe o fundo, guiam-se à nascente...

Sem aviso, largas-me um Beijo;
indelével, tatua-me a bochecha com fogo.
Deixo-me em magia entre braços,
resignado
ao suor salgado,
ao bafo quente,
ao sonho que usufruo...


Rui Diniz