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17 dezembro, 2020

Dona Lúcia

Sozinha, a Dona Lúcia sorve a sua habitual sopinha.
É Natal, mas para si, este ano, longe dos netos, do filho, da nora,
a consoada é, afinal, um serão sem gestos concretos, sem o brilho de outrora.

Dizem que é de uma temível praga que por aí anda;
mas Dona Lúcia vê, branda, através do pano com que a obrigam à mudez,
que os outros morrem diariamente, como sempre morreram, com a mesma timidez.

Muda-se-lhe o mundo, como se muda o mundo ao mundo -
que a solidão com que a matam é contagiosa apenas nos corações!
Pois sempre que a crueldade quer e o Amor se entrega a quarentenas - obscenas! -
inteiras nações, das grandes às pequenas, se oferecem à morte.

Mas a morte que mudou o mundo de Dona Lúcia neste Natal,
como afinal mudou o mundo - daquele mundo que por bem se recusava a mudar! -
não foi a morte da praga que se apregoa, mas a morte do seu cheio e caloroso lar.
Morte pequena, comparada; que a morte, por sua impiedade, sabe ela em seus longos anos,
tem roubado mais vida ao mundo por actos insanos e pela fome que por qualquer enfermidade!

Dona Lúcia bebe o que resta da sua sopinha habitual e triste.
A consoada subsiste num dia indiferente, imposto por quem quer que o amor não tenha nada.
Pois «o medo vai ter tudo», leu ela nos versos não-tão longínquos de Alexandre O'Neill,
e a doença que é muito mais da alma que do corpo, essa, é realmente vil,
se conseguir transformar-nos todos, como profeticamente escreveu, nesses relatos,
em muito menos que gente... em pouco mais do que ratos.

Rui Diniz

08 abril, 2020

Restam-nos os Loucos

Aproveito o tempo que me concedem
- como sendo um prisioneiro indesejado,
a quem por vezes se entrega uma benesse
quando se porta bem -
e caminho por uma parte velha da Cidade.
Há ainda pequenas lojas,
bastiões em decadência
que nos recordam dos passos à frente
que agora damos para trás.
Há portas sem cor, há um cheiro a dor podre,
um odor a tristeza, a suor sem fruto,
a morte...


...


Quem noutros tempos viveu ilusões de grandeza
e se sentiu grande senhor de si próprio
(mesmo sendo do povo)
- que era desde então possível sê-lo e ser do povo! -
colocou nas suas mãos um presente envenenado
e serão agora espoliados...
de novo.
Mas ninguém vê...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Ai... a Cidade.
O campo de concentração já sem idade.
A prisão punitiva dos pecados ancestrais,
aplicada no consentimento.
Alguns olham para o matadouro que os espera
e baixam a cabeça.
Alguns vociferam e são loucos,
condenados pelos muitos que são,
no entanto, é moucos!


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...


A tenaz aperta-se cada vez mais,
cada dia mais forte empurrada pelos músculos
dos que por ela são trucidados!
Passam por mim sem qualquer face própria;
há os que caminham cabisbaixos
sem ver fuga do seu fado
e há depois os empinados,
olhando-me do topo dos seus cavalos,
sorrindo já enforcados pelo nó da gravata
que os faz vassalos
e que os mata!
Mas ninguém os acorda...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Caminhando por esta parte velha da Cidade,
recordo as minhas palavras
e canto-as na minha mente
para quem as quiser ouvir:
"Entre o Céu e o Inferno
há um espaço indefinido,
uma História recontada
e um sorriso materno
comprimido
contra a Espada"...
Mas ninguém me presta atenção...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Lê os livros, bebe as palavras
daqueles como eu,
que destroem a ilusão da beleza!
Manténs-te sobrevivente na tristeza
da ausência do nosso Inverno,
que te traria na Primavera
um apogeu!
Escondes-te da verdade...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...

No fundo tu sabes
que a bota cairá sobre a tua face,
que as correntes cobrirão o teu corpo,
que a pestilência inundará as tuas veias...
porque quando eu te avisei
e te dei a ler os meus versos...
tu riste de mim e fugiste,
ligaste a televisão e adormeceste,
tomaste um analgésico e te perdeste,
mataste mais alguém e morreste...
 

No fundo tu sabes:
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
e no mundo
somos poucos!



Rui Diniz, 2008