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09 novembro, 2021

Homem

Oh Mãe!
Sobre o teu corpo escorre o Homem,
cujo rio reúne os incontáveis dedos disformes
que com a água do alto te acariciam.

Homem!
Esse fio que escorrega pela pedra nua,
pelo musgo, pelo tufos verdes dos teus adornos!
É um verde rio, Mãe, este teu Homem!

Oh Mãe!
Como te massajam o Cávado e o Caldo,
entre as tuas velhas rugas escorre este Homem,
o teu mais belo e esbelto filho!

Homem!
Lágrimas envolventes às verrugas no teu primal e rude rosto!

Oh Mãe!
Verdume vivo e húmido; tua magia do sol nascido ao sol posto!

Homem!
O vigor que investe sobre tua pele em doce espuma!

Oh Mãe!
No teu ancião esplendor o meu preso pranto se exuma!

Homem!

Oh Mãe!

Homem... sou!

Rui Diniz, 2016

17 dezembro, 2020

Dona Lúcia

Sozinha, a Dona Lúcia sorve a sua habitual sopinha.
É Natal, mas para si, este ano, longe dos netos, do filho, da nora,
a consoada é, afinal, um serão sem gestos concretos, sem o brilho de outrora.

Dizem que é de uma temível praga que por aí anda;
mas Dona Lúcia vê, branda, através do pano com que a obrigam à mudez,
que os outros morrem diariamente, como sempre morreram, com a mesma timidez.

Muda-se-lhe o mundo, como se muda o mundo ao mundo -
que a solidão com que a matam é contagiosa apenas nos corações!
Pois sempre que a crueldade quer e o Amor se entrega a quarentenas - obscenas! -
inteiras nações, das grandes às pequenas, se oferecem à morte.

Mas a morte que mudou o mundo de Dona Lúcia neste Natal,
como afinal mudou o mundo - daquele mundo que por bem se recusava a mudar! -
não foi a morte da praga que se apregoa, mas a morte do seu cheio e caloroso lar.
Morte pequena, comparada; que a morte, por sua impiedade, sabe ela em seus longos anos,
tem roubado mais vida ao mundo por actos insanos e pela fome que por qualquer enfermidade!

Dona Lúcia bebe o que resta da sua sopinha habitual e triste.
A consoada subsiste num dia indiferente, imposto por quem quer que o amor não tenha nada.
Pois «o medo vai ter tudo», leu ela nos versos não-tão longínquos de Alexandre O'Neill,
e a doença que é muito mais da alma que do corpo, essa, é realmente vil,
se conseguir transformar-nos todos, como profeticamente escreveu, nesses relatos,
em muito menos que gente... em pouco mais do que ratos.

Rui Diniz

08 abril, 2020

Restam-nos os Loucos

Aproveito o tempo que me concedem
- como sendo um prisioneiro indesejado,
a quem por vezes se entrega uma benesse
quando se porta bem -
e caminho por uma parte velha da Cidade.
Há ainda pequenas lojas,
bastiões em decadência
que nos recordam dos passos à frente
que agora damos para trás.
Há portas sem cor, há um cheiro a dor podre,
um odor a tristeza, a suor sem fruto,
a morte...


...


Quem noutros tempos viveu ilusões de grandeza
e se sentiu grande senhor de si próprio
(mesmo sendo do povo)
- que era desde então possível sê-lo e ser do povo! -
colocou nas suas mãos um presente envenenado
e serão agora espoliados...
de novo.
Mas ninguém vê...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Ai... a Cidade.
O campo de concentração já sem idade.
A prisão punitiva dos pecados ancestrais,
aplicada no consentimento.
Alguns olham para o matadouro que os espera
e baixam a cabeça.
Alguns vociferam e são loucos,
condenados pelos muitos que são,
no entanto, é moucos!


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...


A tenaz aperta-se cada vez mais,
cada dia mais forte empurrada pelos músculos
dos que por ela são trucidados!
Passam por mim sem qualquer face própria;
há os que caminham cabisbaixos
sem ver fuga do seu fado
e há depois os empinados,
olhando-me do topo dos seus cavalos,
sorrindo já enforcados pelo nó da gravata
que os faz vassalos
e que os mata!
Mas ninguém os acorda...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Caminhando por esta parte velha da Cidade,
recordo as minhas palavras
e canto-as na minha mente
para quem as quiser ouvir:
"Entre o Céu e o Inferno
há um espaço indefinido,
uma História recontada
e um sorriso materno
comprimido
contra a Espada"...
Mas ninguém me presta atenção...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Lê os livros, bebe as palavras
daqueles como eu,
que destroem a ilusão da beleza!
Manténs-te sobrevivente na tristeza
da ausência do nosso Inverno,
que te traria na Primavera
um apogeu!
Escondes-te da verdade...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...

No fundo tu sabes
que a bota cairá sobre a tua face,
que as correntes cobrirão o teu corpo,
que a pestilência inundará as tuas veias...
porque quando eu te avisei
e te dei a ler os meus versos...
tu riste de mim e fugiste,
ligaste a televisão e adormeceste,
tomaste um analgésico e te perdeste,
mataste mais alguém e morreste...
 

No fundo tu sabes:
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
e no mundo
somos poucos!



Rui Diniz, 2008

28 outubro, 2019

Rebentam as Águas

Palavras de Manuela Barroso, no Facebook.

«Conhecemos Rui Diniz como a VOZ que nos acompanha na Hora Da Poesia, da autoria da nossa Conceição Lima e nos saudosos InVersos.

Mas há outro Rui Diniz: o Poeta cuja faceta hoje vos revelo.
Impossível não colocar este seu Trabalho Poético, entre o que de melhor se faz no nosso mundo literário actual.

REBENTAM AS ÁGUAS” da sua autoria, é um POEMA que consta de cinco Partes
0- O Prelúdio
I- O Alarme
IV- O Processo
VII- O Portão
IX- A Vida

É acompanhado igualmente por 5 VÍDEOS na VOZ do Poeta Rui Diniz,com a performance que todos lhe reconhecemos e admiramos.
Simplesmente SUBLIME!
Com a profundidade das Águas, ele leva - nos a um reflexivo mergulho interior e nas suas correntes cristalinas somos levados por ecos de grande Sabedoria .
Oiçam, leiam e deleitem - se com esta obra fantástica.
É a hora de partilhar e de lhe reconhecermos este outro seu valor apreciando, na sua mensagem, a dimensão deste grande POETA.

Manuela Barroso »

Ouça e leia "Rebentam as Águas" AQUI.


0 – Prelúdio - Hino à Lembrança


I – O Alarme


Toca o alarme.
Para acordar ou dormir?
À força do Tempo, não sei mais porquê.
Pelo peso do fato, pelo fardo da cara lavada
e que acaba sempre, invariavelmente suja,
pela atrocidade pacífica de permanecer
no carrossel que sempre muda,
pelo elegante acto de me banhar nesta lama escura
de onde nascem todas as belas flores,
e as árvores, e o cheiro dos prados, da maresia,
e os certos bichos, e as vãs pessoas,
e as bocas que me lambem à alegria,
e os ouvidos em que minha voz ressoa
e os olhos que perscutam em ousadia
e os cânticos que me sopram de volta ao sono!

Toca o alarme.
Não sei mais porque toca o alarme.
Porque requer a força deste corpo este sinal?
Poderá o negro cofre, cujo engenho de corda
conta todo o tempo
(que não conta para o Tempo!)
ter contado o tempo todo que já não me resta?
Terá chegado o fim do tempo à minha porta,
qual visita inesperada mas sempre certa,
para devolver todo o tempo em que me perdi?
Eu!
Eu que ganhei tanto!
Eu que pude ter um vislumbre da Vida
que a tantos foge
e que tantos outros delapidam
em Renúncia!
Eu que ouvi, imerso no ruído,
o Chamamento de Mim mesmo!

Toca o alarme.
Exige-me.
Trespassa-me.
Detém-me.
Não sei mais porque toca o alarme;
Se para acordar ou dormir.
Urge que eu saiba o que Quero,
tanto quanto saiba o que Sou!
A Eternidade não se esqueceu de Mim!
Vigilante, através das frestas no cofre
sujo, denso, escuro,
a Eternidade ainda me reconhece.
Um sorriso nos seus abertos braços,
me convence.

Aceno-me adeus, por fim, mas não a deus;
pois para onde vou o Falso fica.
Já a sinto, em antecedência,
a firme investida de suas garras,
instando volver-me,
usando todos os truques
em máxima potência!
Usará a voracidade pelo amargo pó
com que molda todas as coisas doces.
Sinto já, mesmo antes de lhe tocar,
a vaidade da obra dos seus dedos;
Dançarão à minha volta as formas nuas
com que quererá reter-me, preso nas suas!
Formas suas que, prometerá,
serão todas minhas – só minhas! –
se lhe ceder!
Jamais me faltará, por sua viciosa palavra,
se me convencer,
o belo que há nos outros a me comprazer!
Entregar-me-á o poder
da morte, do jugo, da fúria
ante a injustiça dos demais sobre o meu ser!

Bastará à modorra me entregar
e com ela adormecer.
Toca o alarme. Por fim.
Toca o alarme por mim.
Toca o alarme:
É Tempo de,
por fim,
por mim,
pôr fim
ao sono;
e acordar.

IV – O Processo


Há uma voz, melodia pura
sobrepondo-se a todo este ruído.
O alarme já não mais toca,
mas por detrás da cortina escura,
tudo quanto estava contido,
soltou-se; outro sentido perdura...

É hora de partir...

«Momentos há em que a minha missão,
tão generosamente a mim entregue,
me pesa como um grave grilhão.
É a longa espera, a curta acção,
a vigilância a quem renegue
a tão belo mundo, ordenado,
regulado por nosso benfeitor.»
- a primeira sentinela, mais antiga,
lamentava algumas vezes o seu fado.
Invocando, porém, a fortuna que o abriga,
desempenha a sua sina com fervor,
pois dura pena aguarda o condenado
desobediente ao comando do Senhor!

«Ora! Com tanto tempo de serviço,
já não devias duvidar da sua graça!»
- a segunda sentinela, um ingénuo noviço,
interpela as dúvidas do seu graduado -
«Com certeza já pouco tempo te falta
para que recebas de recompensa
uma existência humana do teu agrado!»
- conclui o novato em sabedoria pretensa.

«Se acaso tivesses, como eu, este registo,
de plenas vitórias, fielmente dedicado,
verias que há forças que se têm juntado,
invisíveis, discretas, pacientes,
como se um outro plano por nós não visto
actuasse além do que estamos conscientes.»

«Nenhuma força se opõe à do Senhor!»
- exalta-se, fervoroso, o novato -
«Blasfémia é tecer tais considerações!
Reúne teu sentido em torno do seu amor
e terás recompensa à altura das acções!»

«Não sejas assim lesto a julgar-me insensato!
O Senhor eu temo e o Senhor eu tenho amado,
por mais tempo e desafios do que tu supões,
cumprindo o dever ao meu Mestre tão divino!
Não é de sua força que estou eu desconfiado,
mas da percepção que outra maior, um Destino,
se apronta para lhe aplicar um rude trato.»

«Ah! Põe de parte tais fantasias transgressoras!
O omnipotente entregou-nos seu desiderato!
Nova oportunidade de cumpri-lo se aproxima:
vislumbro que outro fugitivo se encima.
Vem, façamos retroceder o candidato!»

Uma sensação quente se origina à minha volta.
É conforto, é arrepio bom, é suave ternura,
que se infiltra, pouco a pouco, como um sono,
visando desarmar meu calmo intento de revolta.
Como se ocupasse o poder central no meu trono,
uma voz se manifesta sobre mim com lisura:

«Bem faria à tua alma descansar um momento.
Contemplar a tua vida, apreciar o teu abono;
há bastante tempo para a viagem que te augura
uma existência celeste, motivada por teu alento.»

Hesito um só instante, mas nada cedo, nada digo.
Rodeado repentinamente de um meigo Outono,
desinteresso-me pela paz do vento no seco folhame,
pelo repouso, pelo canto das árvores e do leve trigo.

«Mereces aqui, por tuas virtudes, que o Senhor te ame.
Aproveita a benesse, porquanto te é dada com orgulho.»

São diversas as oferendas à disposição;
todas elas sondo, como num lúcido sonho.
Com a distância mantida e sem fazer barulho,
declino-as sem resposta, discernindo ilusão,
ciente das ciladas que transponho.

«Ora, que pensas tu haver onde consideras chegar?
Será que sonhas mesmo com enganosa liberdade?
Não sabes que além do céu, o caos é tão medonho
que passado o portão, ser algum logra suportar?
Detém-te onde é seguro e no Senhor há bondade.»

Pensaram que o receio do que não recordo
fosse o motivo que me fizesse regressar.
Evocaram a escassez, a fome, a carência,
para que desejasse morder-lhes tal engodo
memorando a agudez da vil ausência!

***

Há uma intermissão de vazio, um novo estado;
um, que se questiona, sobre o outro que hesita.
Pois há um que se apercebe parasita,
num clamor interno e em consciência,
invejando aquele destino afortunado.

A pausa devolve-me à fria e escura realidade
Destrinço a incerteza que me rodeia;
De um lado, abalada gravidade,
do outro, nova e virgem ideia.

«Que ocorre? Porque vacilas? Esta alma te anseia?
Desastrosa é a consequência que assim te auguro!»

«Como este Ser resiste tranquilo, mas com tanta agência!
Sentinela, companheiro, vislumbramos aqui nosso futuro!»

«Como?! Que dizes?! Impossível o que ouço de um veterano!
Após tanto serviço, cair assim em desgraça e reles falência!»

«Pois que seja, que caia! Aceito suportar recomeço duro!
Cria-se-me Liberdade em inveja e renuncio a este engano!»

«Como podes virar costas ao dever que tanto te compensou?!
Terás, exposto a copiosos desertores, também ficado insano?!
Vinde, Senhor! Aplicai a este maldito traidor vosso pior castigo!
Que eu permaneço em meu posto, incólume ao que me chorou!»

Sabedor que, por sua deserção, irado e certo será o seu fustigo,
intuindo porém, que sua consciência encetara um renascer,
a sentinela despojada suplica ao renegado que o derrotou!

«Tem piedade de mim, oh nobre espírito, e escuta o que te digo:
se Hoje caio, Amanhã serei eu o fugitivo, que, testado, se libertou!»

A velha sentinela, ao mais denso Pó forçada foi a descer.
Sofrerá na alma apertos que até seu ex-Mestre vivenciou!
Apesar do apelo à compaixão, abstenho-me de reagir;
Sofrerá pelos votos feitos e nada posso fazer.
Melhor serviço lhe presto se granjear sair;
que este mecanismo continuará a urdir,
tentando-os, para contidos os manter.

Eu? Sigo calmo e sorrindo: uma velha larva vi hoje cair,
para que em seu lugar um Ser novo desejasse nascer.

VII – O Portão


Avanço envolvido num escuro imenso,
até por estrelas abandonado,
ao meu redor um frio intenso que imagino,
pois só a vontade me guia pelo espaço denso
que me separa do belo e elevado
Portão cristalino.
Como se de repente a pudesse ver,
uma sombra se interpõe.
Um mordaz sufoco me desconforta
e ao meu gesto impõe
que páre, que escute,
tal é a força que o transporta!
Uma penumbra então se apronta.
Aperta-se sobre mim a forte mordaça
e invade este silêncio absoluto,
uma exalação vaporífera que me afronta,
uma sussurante névoa que ameaça
esmagar meu Castelo, se não ceder tributo.

«Detém-te, fugitivo!
A inabilidade dos sentinelas, meus súbditos,
essa houveste transposto.
Sua incapacidade para te conter, porém,
em mim não encontrarás!
Só o desgosto de regressar em castigo!
E quanto maior for a nossa delonga,
aqui, frente a frente
(que a tão poucos concedi tal honra!),
mais firme e exigente
será a sanção que enfrentarás!
Pois sou eu o Mestre das sentinelas
e o Homem perante o meu desejo se curva
desde a antiga criação deste mundo!»

Hediondos mastins emergem das suas trelas,
e um flagelo intenso de um fogo profundo
ergue-se em seu punho, sobre a férrea luva.
No nevoeiro que dá forma ao vil tirano,
intensifica-se a negrura colérica e turva.
Exibindo ardente força e um poder insano,
procura conquistar-me pelo frio medo.

«Aceita agora o destino que te concedo
e do meu vigor te darei a beber.
Poderás ser como outros tantos que escolhi
e ser Rei em meu nome - que nobre enredo! -
deter de entre os demais homens o poder!
Responde, fugitivo! Responde-me aqui!»

"Tu és o Prisioneiro, o Primeiro."
- penso, em meu santuário eminente -
"És Mestre da Ilusão somente,
burlão de almas, usurpador,
para a eternidade encerrado!
Poder algum tens sobre a vida que não criaste."

Diante do terror intenso das impuras chamas,
permanece intacto,
meu Castelo, imperturbado!

«O Silêncio é minha resposta.»
- afirmo.

E o látego de raiva fulminante,
aceso por um ódio sem fim,
traçando um rasto de lumes finos,
investe pesado sobre mim!
Folgada a corrente comandante,
suas bestas aliadas, de afiados caninos,
por seu lume atiçados,
investem iradas sobre mim!

Não há dor, aqui, e o medo já não me verga,
por muito que os estimules em minha memória
- será outra a história deste Ser que te renega.”

***
Rebentam as águas!
Num instante, do fogo intenso,
não lhe restam agora senão fumo
e mágoas!
Os cães aterradores, ganindo,
soltam-se do Mestre
em medrosa debandada!
A sua própria mão-de-ferro,
forçada por um relâmpago luminoso,
é repelida do espaço em que me encerro!
Urra um grito furioso!
Surge repentina alvorada!
Através da abertura no radiante Portão,
uma língua de Lava e de Leite
se esgueira.
Invade-me, ilumina-me,
remove de mim a confusão
e elimina-me a cegueira!

IX – A Vida


Sereno...
Inteiro...
Livre...
Uma Paz luminosa me circunda.
Verdadeira Paz, desta vez incontestável,
por inteiro oposta ao material conforto efémero...
De onde terá surgido este radiante movimento
líquido, luminoso, interminável?...
Não surgiu; sempre existiu comigo.

Como num útero, agora Eu repouso;
mas a realidade que me envolve é pura,
e terá mesmo havido outra?
Não me recordo de onde vim,
mas sei que cheguei aqui de algures...
de onde mesmo?
Algo interior me sugere outra realidade,
mas não sei ao certo, não me lembro.
Aqui sei que é puro:
nada nem ninguém me alimenta
que não Eu próprio e a Mim somente.

No entanto, não estou só.
Sinto alguém comigo, mas quem?
Ninguém vejo;
apenas a tal Luz que se movimenta
como casta água, onde me banho.

«Tudo fará sentido.
Já não são olhos que te fazem ver

Aqui, a luz não é inversa:
não preciso de olhos com cernes negros,
para ilusionar o escuro,
como se luminoso fosse
esse fogo tenebroso.
Esta Luz não requer olhos que a vejam,
não requer alma que a entenda.
Aliás, alma alguma jamais a entenderia,
tão oposta que é em sua natura.
Sem olhos, sem corpo, sem alma...
...sem quaisquer dos artifícios do Oposto.
Para contemplá-la, para nela existir,
Eu basto...
A Fonte que sempre existiu.
A entidade inteira, singular e à parte
de todas as partes que atrás larguei.
Basto Eu, aqui,
o imortal,
o incriado,
Eu...

«Tudo fará sentido.
Já não é com ouvidos que tu escutas

Não é uma voz crua que me chega,
não precisa de som, nem de palavras.
É assim uma Voz que há muito escuto
e, contudo, nunca comigo falou.
Tais conversas,
nunca tocadas pelo tempo,
foram monólogos
de paciência e sapiência.
O Génio-relâmpago com que o todo
parece caber na ínfima vacuidade
de um instante eterno,
prestando ténues vislumbres
do que reside por detrás
de todos os pensamentos,
de todas as palavras,
de todos os actos:
o imortal,
o incriado,
Eu...

«Tudo fará sentido.
Já não é de Pó o corpo em que existes.»

Acordo à minha substância resplandecente.
Sou como de ouro e do mais puro cristal,
sou a lídima pérola incriada,
já livre do cárcere das conchas
da vieira que estalou.
Falho na descrição do que Sou,
pois são escassas as palavras definidas
e seus conceitos parcos
e vagos de realidade.
Foram criadas no intuito de orar à criação
e são por isso imperfeitas e até opostas
à representação do que é eterno
e existente além da sua cega e sucinta função.
A essência não tem palavra alguma.
Para descrever meu excelso estado
mais valia que cantasse a melodia
que sobressai nos momentos de Silêncio
em que tudo o que parece existir
se desmorona em partículas de ilusão:
O imortal,
o incriado,
Eu...

Emerjo da Água protectora como um Marlim,
de Lança acesa e em riste à minha fronte,
Escudo bem firme junto ao brioso peito!
Sobre meus alvos cabelos cintilantes,
assenta a Corôa da minha Soberania!
Pelo Baptismo destas Águas fronteiriças
renasci aquele que sempre foi,
retomei minha efectiva presença
na linha da Existência sem Tempo!
Recordo agora!
Capturado pela Tentação, Caí.
Aí, alheado de Mim, algemado ao efémero,
Chronos, com o seu torno implacável,
despedaçou-me imensuráveis vezes
e nunca Me tocou!
Kairós, o fleumático, conspirou Comigo,
abriu e encerrou incontáveis portas
e insídias me lançou!
Aión, o intemporal, aguardou por Mim.
Recebe agora neste Reino, sem cerimónias
um dos que Acordou!

«Tudo fez sentido.
Vê agora, fora do Tempo, o tempo que deixaste

Inflamo-me de rubro puro!
Um Fogo Sagrado se manifesta, por fim!
Tudo me é claro, tudo se encaixa,
acedo à Memória de minha condição eterna
e tudo entendo, intemporalmente,
como se nunca algo tivesse ocorrido.
Não há mais segredos guardados de Mim:
na curiosidade, nas trevas Caí,
pela verdade, do abismo Volvi;
na imprudência, fui capturado,
pela essência, sou Libertado;
na quente ilusão, fui vivente,
pela revelação, sou Renascente.
Cada ponta da minha Existência,
outrora solta, por ignorância,
uno-a agora em seu próprio lugar,
encaixo-a no encadeamento certo.
Decerto, munido de tal Sabedoria,
jamais tornarei a Cair,
imune que Sou à Tentação.

Disposto sobre o Abismo de onde Renasci,
acompanhado pelos tantos outros,
cada qual com sua História e seus motivos
com que abriram o Portão para que saísse,
constato a escolha que se me depara:
posso partir, explorar bem longe do Abismo,
descartar por completo a prisão do Oposto
e servir-me da Liberdade da pura Essência
para contribuir como melhor me aprouver.
Posso também, com estes tantos outros, ficar;
Tantos como eu ainda lá residem, no cárcere.
Posso daqui Ver com o meu Fogo Puro
e, com meus Companheiros,
atirar sementes de Feijoeiro,
lançar escadas de Luz,
promovendo o Regresso daqueles,
que sendo como Eu, como Nós,
entre os demónios do Oposto,
dormindo, permanecem.

Jamais tornarei a Cair,
imune que Sou à Tentação...
mas cabe-me decidir,
sem tempo ou imposição,
se aqui fico para acudir,
tal como eu pude fruir,
àqueles que fogem
da Prisão...