Aproveito o tempo que me concedem
- como sendo um prisioneiro indesejado,
a quem por vezes se entrega uma benesse
quando se porta bem -
e caminho por uma parte velha da Cidade.
Há ainda pequenas lojas,
bastiões em decadência
que nos recordam dos passos à frente
que agora damos para trás.
Há portas sem cor, há um cheiro a dor podre,
um odor a tristeza, a suor sem fruto,
a morte...
...
Quem noutros tempos viveu ilusões de grandeza
e se sentiu grande senhor de si próprio
(mesmo sendo do povo)
- que era desde então possível sê-lo e ser do povo! -
colocou nas suas mãos um presente envenenado
e serão agora espoliados...
de novo.
Mas ninguém vê...
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
Ai... a Cidade.
O campo de concentração já sem idade.
A prisão punitiva dos pecados ancestrais,
aplicada no consentimento.
Alguns olham para o matadouro que os espera
e baixam a cabeça.
Alguns vociferam e são loucos,
condenados pelos muitos que são,
no entanto, é moucos!
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
A tenaz aperta-se cada vez mais,
cada dia mais forte empurrada pelos músculos
dos que por ela são trucidados!
Passam por mim sem qualquer face própria;
há os que caminham cabisbaixos
sem ver fuga do seu fado
e há depois os empinados,
olhando-me do topo dos seus cavalos,
sorrindo já enforcados pelo nó da gravata
que os faz vassalos
e que os mata!
Mas ninguém os acorda...
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
Caminhando por esta parte velha da Cidade,
recordo as minhas palavras
e canto-as na minha mente
para quem as quiser ouvir:
"Entre o Céu e o Inferno
há um espaço indefinido,
uma História recontada
e um sorriso materno
comprimido
contra a Espada"...
Mas ninguém me presta atenção...
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
Lê os livros, bebe as palavras
daqueles como eu,
que destroem a ilusão da beleza!
Manténs-te sobrevivente na tristeza
da ausência do nosso Inverno,
que te traria na Primavera
um apogeu!
Escondes-te da verdade...
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
No fundo tu sabes
que a bota cairá sobre a tua face,
que as correntes cobrirão o teu corpo,
que a pestilência inundará as tuas veias...
porque quando eu te avisei
e te dei a ler os meus versos...
tu riste de mim e fugiste,
ligaste a televisão e adormeceste,
tomaste um analgésico e te perdeste,
mataste mais alguém e morreste...
No fundo tu sabes:
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
e no mundo
somos poucos!
Rui Diniz, 2008
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2 comentários:
"...No fundo tu sabes
que a bota cairá sobre a tua face,
que as correntes cobrirão o teu corpo,
que a pestilência inundará as tuas veias...
porque quando eu te avisei
e te dei a ler os meus versos...
tu riste de mim e fugiste,
ligaste a televisão e adormeceste,
tomaste um analgésico e te perdeste,
mataste mais alguém e morreste...
No fundo tu sabes:
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
e no mundo
somos poucos!"
Sentidamente verdadeiro!
Gostei muito!
Um abraço
Grato!
O poema é de 2008, mas a sua relevância é evidente agora.
Cumprimentos!
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