Quando eu nasci, havia um céu sobre a minha cabeça.
Diziam-me que havia também um horizonte, mas eu olhava pela janela
e acenavam-me paredes sujas que tudo tapavam.
Apesar de tudo, havia um horizonte que me esperava. Assim me dizias.
Cresci por entre as miudezas de uma solidão latente, escondida até de mim mesmo.
Não tive falta de gente - tive falta de mim.
Talvez o meu corpo tenha nascido vago e, fazendo uso disso,
uma colónia de sonhos nele encontraram guarida.
Indigno!
Fui me perdendo na passagem dos anos em que sonhava voar
por aquele céu que havia sobre a minha cabeça,
mas nos quais, ao invés disso, caminhava rumo ao horizonte que dizias me esperar.
Fazia-o sorrindo, mãe, fazia-o para não te desapontar.
Não suportava a ideia de comigo te desiludires! Ora essa!
Poderia eu, que nascera para alcançar o horizonte que tu sempre desejaste,
fazer o desplante de nem sequer sorrir enquanto andava para o teu calvário?
Não! Não podia fazê-lo! Com que direito? Eu que nem vivia?
Pois se vivia aqui neste corpo alguém, eu não era. Quem seria?
Um ovo posto por um desses sonhos que nem meus eram?
Como poderia ser meu tal sonho, se eu nem existia sequer?
Eu só queria conhecer o céu que havia sobre a minha cabeça!
Indigno!
Sempre ninguém fui e só agora o reconheço, mãe. Ao fazê-lo, contradigo-o,
pois ninguém pode reconhecer ser alguém e continuar-se ninguém! Não é?
É essa a contradição que me raptou para longe de ti! Oh minha mãe... não o vês?
Não tens tu qualquer mínima clareza no teu espírito para ver,
com os mesmos olhos que me souberam banhar na fé cega
desse horizonte tapado por paredes encardidas,
que foi para ser alguém que te fugi dos braços?
Foi um cadáver que tu alimentaste com as tuas delícias!
Um corpo desalmado pela cega fé que me deste!
Eu pertencia ao céu que havia sobre a minha cabeça, mas a tua fé era exclusiva.
Exclusiva e soberana.
Indigno!
Porque andava eu, afinal, se sem vontade, sem vida, sem voz?!
Esforçava-me a cada passo, só para me apaziguar nos teus braços e nos teus lábios rindo,
mas eu nem andar sabia com as asas com que nasci!
Olha que o horizonte dos teus sonhos, que com tanto carinho me preparaste,
não aceita convívio! Ele constroi mártires, mãe, mártires como tu!
Mártires como ele. Ele sim, aquele que tu amas mais que todos,
por ser a fiel cópia dos sonhos que nunca viveste.
Ele é mártir pois não sabe que caminha também por ti. Que te leva a cada passo.
O sucesso dele é o teu, contrafeito. A sua falsa vitória, o meu defeito.
Indigno!
E tu insistias que o horizonte estaria lá, esperando-me, se caminhasse;
eu que nem sequer pernas tinha! Oh mãe! Que falsa ideia essa!
Parece que tinhas pressa em passar-me a maldição, como a ti fizeram!
Sem querer! Eu sei que foi sem querer. Pois se te posso amenizar a consciência,
faço-o dizendo-te que fizeste como melhor sabias... mas sabias tão pouco, minha mãe!
Sabias apenas da tortura abafada pelos sonhos dos outros na vida que te deram.
Eu sei, minha mãe! Por sabê-lo sei que és mártir!... Mas sabias tão pouco!
E eu, que cada vez que olhava para cima
- mesmo com tecto, com nuvens, com a escuridão toda do teu semblante carregado,
desaprovando-me o olhar - via o céu que havia sobre a minha cabeça...
Indigno!
...
Agora estou longe, já não vejo ninguém, já não vejo nada.
Até o horizonte, esse tal que nunca fora meu, desapareceu de todo da minha imaginação.
Não sei sequer se tenho força nas asas para partir à procura do céu que havia sobre a minha cabeça.
Tudo à minha volta está opaco. O sono toma conta de mim.
Uma amargura enorme ocupa agora o espaço onde podia ter existido eu.
As forças faltam-me. Os sonhos partiram-se antes de eclodir.
Oh mãe! Pudesses tu ver com os meus olhos!
Pudesse eu ter-me escapado ileso dos teus braços,
pudesse o teu olhar me ter deixado existir.
Rui Diniz
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