Sozinha, a Dona Lúcia sorve a sua habitual sopinha.
É Natal, mas para si, este ano, longe dos netos, do filho, da nora,
a consoada é, afinal, um serão sem gestos concretos, sem o brilho de outrora.
Dizem que é de uma temível praga que por aí anda;
mas Dona Lúcia vê, branda, através do pano com que a obrigam à mudez,
que os outros morrem diariamente, como sempre morreram, com a mesma timidez.
Muda-se-lhe o mundo, como se muda o mundo ao mundo -
que a solidão com que a matam é contagiosa apenas nos corações!
Pois sempre que a crueldade quer e o Amor se entrega a quarentenas - obscenas! -
inteiras nações, das grandes às pequenas, se oferecem à morte.
Mas a morte que mudou o mundo de Dona Lúcia neste Natal,
como afinal mudou o mundo - daquele mundo que por bem se recusava a mudar! -
não foi a morte da praga que se apregoa, mas a morte do seu cheio e caloroso lar.
Morte pequena, comparada; que a morte, por sua impiedade, sabe ela em seus longos anos,
tem roubado mais vida ao mundo por actos insanos e pela fome que por qualquer enfermidade!
Dona Lúcia bebe o que resta da sua sopinha habitual e triste.
A consoada subsiste num dia indiferente, imposto por quem quer que o amor não tenha nada.
Pois «o medo vai ter tudo», leu ela nos versos não-tão longínquos de Alexandre O'Neill,
e a doença que é muito mais da alma que do corpo, essa, é realmente vil,
se conseguir transformar-nos todos, como profeticamente escreveu, nesses relatos,
em muito menos que gente... em pouco mais do que ratos.
Rui Diniz
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17 dezembro, 2020
Dona Lúcia
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