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23 agosto, 2007

Para a Ovelha

A manhã de um novo dia já nasce velha,
pois floresce na lama de um jardim putrefacto.
Para a ovelha, não há tacto;
só um sonho longínquo e um sentimento de dever
e a roupa rígida que não se atreve a romper.

Os corpos são amestrados pela cabeça
e movimentam-se em modo automático.
Para a ovelha, tudo é estático;
aprisionada entre os deuses e os demónios,
entre o espírito santo e seus heterónimos.

As horas passam num movimento sem mente,
um vácuo que se preenche na obediência.
Para a ovelha, não há ciência;
só a mão erguida e a face derrotada,
unidas à ignorância que usa como uma espada.

No seu estômago, digere a vontade que entregou
às carícias das mãos paternas dos pastores.
Para a ovelha, não há sabores;
Há um pão duro engolido a cada alvorada
completado com um café
e um doce pastel de nada...


Rui Diniz

31 julho, 2007

Poema Suspirado

Algures, num momento de silêncio,
neste campo aberto que é a minha vida,
de noite,
sempre de noite - quando a magia acontece,
surge uma forma no vento
e nele,
um poema suspirado.
É certo que os poemas são mesmo efémeros
e as palavras um dia serão nada,
desaparecerão no esquecimento das eras
tal como as peles que vestimos
e os nomes que ostentamos.
O poema que é teu,
trazido pela brisa que na relva fresca te desenha,
um dia não será mais que outra coisa,
acompanhando-nos,
na impiedosa sucessão de formas e sabores
que provamos
e temos de largar.

Mas esse teu suspiro
e essa tua forma
e esse teu poema
e esse teu sentido (tão próximo do meu)
pintaram-se no quadro do horizonte
deste campo aberto que é a minha vida...
e de noite, sempre de noite - quando a magia acontece,
a realidade perceptível da ilusão do universo
colidirá com nossos fogos,
ardendo em uníssono,
dançando no mesmo vento
que agora desenha nós os dois,
que agora suspira o ar quente da cama embriagada,
que nesse momento se deixa entregar...
no mesmo campo aberto que é a nossa vida
e de noite - quando a magia acontece,
àquela pequena parte de um segundo
de uma eternidade passageira.


Rui Diniz

13 julho, 2007

Crepúsculo

Fotografia de autoria de Selena Nery

O mar âmbar morrediço de mais um dia
que se dilui na dureza inexpugnável da penumbra,
traz o encanto e a magia,
traz um manto feito sombra.

A manhã nova que já se aguarda
nada mais traz na sua farda
que outro dia e outro "amor",
e outro sol e outra dor,
e outra conquista pelo ser maior
que na sua empresa,
mais perde de vista
a Natureza.

Humanidade perdida,
a quem ciclicamente a paz é concedida
no intervalo precendente a cada açoite;
Humanidade arrefecida,
que deste o teu poder aos deuses da vida
e que agora gelas no medo da noite.

Ah! A manhã nova que já se oferece
que nada mais traz, em que nada acontece,
é a nova era de um novo mesmo,
em que outra farsa, em que outro sismo,
em que outro céu, em que outro abismo,
nos envolverá na certeza
que mais perde de vista
a Natureza.

O mar âmbar morrediço de mais um dia
que se dilui na dureza inexpugnável da penumbra,
traz o encanto e a magia,
traz um manto feito sombra...


Rui Diniz

06 julho, 2007

Guerreiros !

Guerreiros!
Irmãos meus!
Que outrora nas vossas lâminas
sucumbiram as doenças da Terra!
Chamo-vos de novo, Irmãos!
Toco o sino do chamamento
que vos acorda das drogas e das novelas,
que vos devolve o punho firme,
o escudo erguido,
as lanças de sentinelas!

Guerreiros!
Irmãos de sangue!
Filhos da serpente das estrelas
atormentada por vossas vozes!
Gritai de novo, Irmãos!
Canto a melodia da batalha
que vos bombeia o coração e os sentidos,
que vos veste a armadura brilhante,
o elmo nobre,
a aliança dos contidos!

Guerreiros!
Irmãos de alma branca!
Reergam os batalhões de nobres bravos
que outrora derramaram sangue Atlante!
Venham a mim, Irmãos!
Toco o sino do chamamento
que vos invoca à chuvosa alvorada,
que vos devolve a coragem
e às nossas mãos,
a fiel espada!


Rui Diniz

22 junho, 2007

M

Manto sobre manto,
regra atrás de regra,
descobrimos o encanto
da existência cega...!

Manto sobre manto,
linha atrás de linha,
constato com espanto
que a visão não é só minha...!

Manto sobre manto,
porta atrás de porta,
revela-se o quanto
esta vida não está morta...!

Manto sobre manto,
ânsia atrás de ânsia,
sacrifica-se um santo
para manter ignorância...!

Manto sobre manto,
grito atrás de grito,
entoo este canto
p'lo despertar que agito...!

...

Manto sobre manto,
vida atrás de vida,
espero no entanto...
alcançar-lhe uma saída...


Rui Diniz

12 junho, 2007

Amo

Amo no meu corpo.
Amo nas ligações entre átomos
ou lá o que se queira chamar ao infinitésimo
da infinita parte do que nada é.
Amo e apenas amando
me mantenho unido,
na forma do que interpretas
como um homem de bom umbigo.

Amo na minha mente.
Amo nas correntes cíclicas entre pensamentos
e nas espirais da consequência
daquilo que do nada é consciência.
Amo e apenas amando
me mantenho pensante,
na forma do que interpretas
como um homem bem ensinante.

Amo na minha alma.
Amo nos estágios da simbiose
entre os sonhos que a existência inflama
e que a essência acalma.
Amo e apenas amando
me mantenho existente,
na forma do que interpretas
como um espírito de sol nascente.

Amo...
logo existo.


Rui Diniz

05 junho, 2007

Reflexão sobre o que nada é

Chamo-lhe mudança mas alimento-a de esperança.
Na via do inevitável nem um generoso raro
me adoça a boca,
porque o que corre nas minhas veias é sangue
de esperança,
sangue modificado e memorizado
no esquecimento dos milénios.

Ajo esperando, como se não tivesse fuga
e na realidade fujo dela
pelo medo de não existir mais.
Resta-nos pouco tempo e eternidades banais,
umas futilidades inúteis,
uma eterna procura pela quimera que não existe,
pela segurança de lá fora
imposta cá dentro...
mas o que não nasce aqui dentro não vive
e por isso não morre!
Se não fizessemos questão em nascer
e fazer nascer vez após vez,
nunca morreriamos e na realidade, como agora,
não existiriamos - nem num sonho mal dormido.

A verdade é que nada é;
nada pode ser mais que uma forma numa chama
que o vento sopra!
Nada nem ninguém se segura à ilusão de
existir em si, por si, para si...
que nada é e nada se cobra!
Deixamos uns contratos assinados
com o futuro incerto
e outros tantos que nem lemos
por nos faltar a vista
e por esta miragem persistente nos envolver,
como múmias num sarcófago, embalsamados.
Somos é uns mal-amados!
Renegados por nós próprios
seguindo as imagens veneradas
que tão longe estão de nós como as estradas
que nos apontam para seguir os nossos ópios.

Ergue-te ó tu que nada és!
Ergue-te e luta pelo teu pedaço de nada
que é Amor da cabeça aos pés
e que vale a pena ser defendido...
nesta esperança da mudança
que afinal, como nós,
nada é de definido
e só vive na etérea
lembrança!


Rui Diniz



Acabei de criar um audioblog onde junto todas as declamações de poemas (maioritáriamente meus) que vou gravando. Se quiser dar uma olhada (e uma escutadela), visite A Voz da Corte.

21 maio, 2007

Momento

Fotografia de autoria de Alex Gil

Piano de fundo,
é Jarrett em Viena,
um murmúrio
na roupa
que largamos em cena...
Umas mãos saudosas,
suaves e quentes,
invadem
teus espaços
incandescentes...
A boca de nós dois
resolve o mistério
por detrás
do sabor
de um beijo sério...
As verdades que vestimos
deixámos à porta,
que aqui dentro,
o momento,
é só o que importa...
Tens na pele
marcado
o mestrado da vida
e eu tenho na minha
suavidade contida...
Gritas e gemes
no teu mar revolto,
arrepios
atravessam-te
quando te volto...
Com as mãos na parede
eu entro em teu corpo,
vês que na verdade
ele tem estado
morto...
As mãos saudosas,
que agarram o arrepio,
são vivas lembranças
do teu rodopio...
Deixaste-me o corpo,
escorrendo prazer,
encontrei-te
nas nuvens
e refiz-te Mulher...
Se o orgasmo que soltas
for um grito infinito,
nós dois cantaremos
no prazer
deste calor...
bendito.


Rui Diniz

14 maio, 2007

Professor

Passo os meus dias com as crianças,
fingindo ser um pai que não respeitam.
Deixo a consciência à porta,
remeto o coração ao silêncio,
presido a rituais de veneração
a livros gastos e indolentes.

Não apresento nada de novo
e não o faço por mim.
Faço-o por chegar a casa e tê-la.
Faço-o para dar alimento ao corpo
e para preservar
este "eu" tão submisso...

Sou professor ou lá o que isso é...
não ensino nada nem tal é suposto;
devia ser um auxilio e não um posto.
As crianças nem me ouvem e ainda bem...

Eu alimento a esperança tímida
de que são os que fogem
que um dia
serão alguém...


Rui Diniz

30 abril, 2007

Bregenz ao almoço

Excerto do Concerto de Bregenz de Keith Jarrett

As notas ecoam na minha cabeça...
"tam, taram, taramtaram...".
O amigo Jarrett ajuda-me a encher minutos vazios de tempo eficaz.
E ele lá continua "taram, taram"…
e na segunda vaga da melodia,
surges tu como uma chama que acende o pavio de uma vela.
As velas, por muito belas e bem cheirosas que sejam
acabam sempre por gastar todo o pavio
ou afogar a chama em si próprias...
e nem tu és excepção...
nem tu,
a vela mais bonita de todas as que já vi arder,
apenas porque és a vela que aqui hoje arde em mim.
Em muitas religiões,
as velas estão associadas a promessas, a desejos, a pedidos...
e se usar a analogia contigo,
és a promessa mais forte,
o desejo mais ardente
e o pedido mais profundo...
que a tua chama se apague tarde, é melhor do que cedo.
E sem religiosidade mentirosa te digo
que quando a tua chama se extinguir nessa vela
noutra arderá… como eu,
como tudo,
como todos,
nesta unidade energética que partilhamos!

No meio disto,
o Keith já martela o seu piano,
com os dedos nas teclas e os pés na madeira;
é um maluco!
Mas um génio. Como qualquer maluco...
ou melhor, qualquer génio é seguramente um maluco…
Que a loucura é a genialidade da diferença
exposta ao medo que temos de ser iguais…
na diferença.
Hmm… Mas isso agora... não interessa.
A música sim, interessa. O momento.
E a tua face sorrindo também.
E o teu beijo tão quente, doce e molhado
como chocolate derretido em leite.
Isso sim, interessa.
Esse ambiente de quase morte por prazer que me faz tão dormente.
É isso que importa.
Porque a morte, tal como a vida, é um prazer;
o prazer de apenas ser;
é a existência, a experiência,
a partilha…
E no fim,
sim, no fim do que quer que seja que se transforme
e que vemos cegamente acabar,
é isso que fica
e é isso
que à luz do sol ou da lua,
realmente importa…


Rui Diniz

23 abril, 2007

Meu Mundo, Minha Casa

Pode ouvir a minha declamação deste poema aqui: Meu Mundo, Minha Casa

O que eu queria era não ter casa;
vaguear no mundo como um saltimbanco,
vagabundo,
exibindo os meus truques lúcidos
pelas feiras do amor e do sexo.
Queria ter nexo;
com este mundo e comigo
e não ter tecto,
nem umbigo,
transportar as miragens do que sou
por outras paragens...

Mas tenho-me aqui;
agarrado a este ermo escuro
cheio de arestas
e paredes e cantos;
eu quero é ar puro!
Quero fazer do mundo
um lar,
inseguro,
para não amordaçar...

Quem me dera fazer da minha casa
uma montanha,
uma quimera de onde todos os ventos partem,
uma floresta, um lago,
uma entranha
do ventre materno que afago
e que não estranha
quando parto.

Mil mulheres passariam por meu lar,
mil corações que não se calam,
que cantam por esta casa infindável,
sem arestas
ou paredes ou cantos;
mas repleta de espantos
e de amor insaciável...

O que eu queria era não ter casa...
ter sim o mundo
e em cada braço,
uma asa...


Rui Diniz

10 abril, 2007

Caixa de Comprimidos

Ouça a minha declamação deste poema aqui: Caixa de Comprimidos

Tenho uma caixa de comprimidos na mão;
devo tomá-los?
Ou talvez não?

Se bastar o momento para conseguir,
talvez assim...
eu de facto me deixe ir.
Não faço cá falta;
fica cá toda essa malta
por aí...
inexistente...
a sorrir... ...

Que casa vazia esta!
A que o meu corpo habita
e o corpo
que a minha alma infesta!
Não é preciso mais drama...
Só uma cadela aquece esta cama
e traz ternura à mesma mão
que segura a caixa profana...

Não vos quero dar mais neste momento,
nem jamais me converter!...
sirvo-me agora de um lamento
e já só me falta morrer...
Que morte lenta e penosa
vivo por entre os anos!
Como pode minha marca ser saudosa
se meus pensamentos são insanos?!
Tenho mil demónios contidos!!
UMA LEGIÃO!!!!...

...e uma caixa de comprimidos;
devo tomá-los?
Ou talvez não?


Rui Diniz

02 abril, 2007

Salteador de Intervalos

Vivo salteando os intervalos,
pelas marés cheias do ser,
montando meus cavalos,
sentindo meus resvalos,
beijando rainhas
das elites do prazer.

Assumo o meu destino
como se ele o fosse...
e à minha escolha
como a um caminho.
Se aceito viver sozinho
e embriagado de emoção,
amem-me;
o Amor do meu vinho é farto
e servido em cálices
pelo chão!

E quando um intervalo finda,
parecendo que não...
eu sou lúcido ainda!


Rui Diniz

27 março, 2007

É Preciso Viver!

É preciso viver!
Os lençois gastos de uma manhã
mal acordada!
O sonho que de cedo nos entrou
pela madrugada!
A flor que por nós passa
e permanece parada!
O jardim que se levanta pela
janela escancarada!

Viva-se a chama solta
de vestimenta!
Viva-se
sem tormenta!
Viva-se o corpo e a mente
unos!
A moral isenta,
os sentidos limpos
e imunes!

É preciso viver!
O mar turbulento quando se chora
sem razão!
O sorriso rendido quando alguém nos seca
com a mão!
O amor entregue, sentido e abençoado
pela razão!
A vida que percebemos e a que sentimos
no coração!

Viva-se a alma solta
de lamento!
Viva-se
cá dentro!
Viva-se o corpo e a mente
unidos!
A incerteza da lógica
entrelaçada com a dos
sentidos!

Amigos!
É preciso...
viver!


Rui Diniz

13 março, 2007

Noite

Noite...
o limiar da minha fortuna.
A massa em que me afundo
entre um olhar lúcido
e uma existência
missionária e dolorosa.
Só...
Só na noite...
Sem guarida senão um telhado passageiro,
sem amor,
senão em cada porto de marinheiro...

Compreendo-me,
só,
na noite.
Observo-me
e o quanto sou
e o quanto dou
que afinal,
contas feitas,
é nada.
Uma armada
armada com nada.
Não fujo e atropelo-me.
Não morro e enregelo-me,
no frio,
só,
da noite...
Noite...
o limiar da fronteira
entre a lacuna em que sempre estou
e a loucura
do que sempre,
mas sempre,
sou...
e só,

na noite...


Rui Diniz

05 março, 2007

Não Faço Nada

Eu não faço nada.
Nem aponto com certezas um remédio,
nem ajo sobre os problemas.
Apenas aponto o lixo
geralmente com o dedo médio.
Recomendo a muita gente hipócrita
a visita ao falo geral,
conhecido pelo infinito
e pelo insulto banal
que não se evita.
Mas eu, propriamente, nada faço.
Fico-me por aqui a falar
e a escrever monotonias
que ninguém sintoniza.
Por vezes, nas minhas manias,
sou como a torre de Pisa
que se não páro de me inclinar
cairei um dia
de cansaço...
Ai que nada faço...
Parece faltar-me energia
para combater a homogenia
e despertar pessoas
com o meu dedo médio,
em riste,
pintando as coisas boas
com a verdade do assédio,
com que eles fazem do alegre sonho,
o mundo triste...
Eu até me envergonho,
se me olhar socialmente;
sou um demente,
enfadonho,
inconsequente,
tristonho
e exigente...
Oh que merda!
Tinha de brotar de mim esta loucura
no meio de um mundo são
e intransigente!
E o que nos conserva
é este duro e escasso pão
com que esse tal deus de brandura,
alimenta a sua gente...


Rui Diniz

25 fevereiro, 2007

Larguei-te no Mar

Fotografia de autoria de Dulce Lázaro.
Pode ouvir a minha declamação deste poema, aqui: Larguei-te no Mar


Larguei-te no mar hoje...

soltei as tuas cinzas de dentro de mim
e expus-te ao vento cantante;
ele levou-te mas nunca te espalhou.
Manteve-te na íntegra
a mulher que hoje é passado
e que inteira me renunciou.

Foi melhor assim
e não sobreviverá em mim qualquer mágoa,
mas libertando-te nesta água,
procurando de ti hoje o fim,
compreendo
que se o sol fura o cinzento do céu
só para te ver...
é porque alguma coisa entre nós
ficou por viver...


Rui Diniz

19 fevereiro, 2007

Poeta!

Duvidam da palavra de um poeta?!
Um poeta ama as palavras!
Um poeta tem muitas não só uma!
Um poeta sabe que ou tem as palavras certas,
ou nenhuma!

Com que autoridade tiram crédito ao poeta?!
Um poeta ama as verdades!
Um poeta tem muitas não só uma!
Mesmo que não concretas, o poeta ou tem várias,
ou nenhuma!

Quem são eles para humilhar o poeta?!
Um poeta ama o ridículo!
Um poeta veste de ridículo a sua pluma!
A sanidade da sua ideia ou é ridícula,
ou nenhuma!

Podem ir em Paz, opositores do poeta!
Um poeta ama a Paz!
Um poeta tem muitas não só uma!
Um poeta sabe que ou tem a Paz da alma e a do corpo,
ou nenhuma!


Rui Diniz

13 fevereiro, 2007

A tabaco e vinho

A tabaco e vinho tento alcançar-te;
na ausência de um espera
que nos une e divide.
Passados tantos anos sem te conhecer,
sinto que vivi a apresentação
de uma qualquer cerimónia
em que premiaram a minha carreira
com o teu coração.
Uma carreira no cinema,
da qual só me lembro
da tua entrada em cena;
chegaste vinda de um Dezembro
sentindo que contracenar comigo
valeria a pena.

Há um certo gosto
que não se dilui neste Porto
nem no fumo de Amsterdão;
o sabor da tua boca em desejo
e do conforto
que te acompanha o sorriso e a mão...
Estou aqui, absorto.
À minha volta a vida ainda gira,
imersa na artificialidade da mentira,
perdida em rumos falsificados.
Quem dera que todos eles fossem amados
como o sou por ti, mulher...
Quem dera que todos eles pudessem colher
os frutos de uma boca como a tua,
pois aí estariam eles absortos,
e comigo, deixariam de girar na vida,
largariam as coisas e estariam de partida
para onde os meus sonhos vivem soltos.

Não sei em que lugar estou,
mas estou contigo.
Absorvo esta sensação no umbigo
de ver-te chegar de mansinho...
e entregue a tabaco e vinho tento alcançar-te;
na presença de uma espera ausente
que com meus sentidos no futuro
ainda vivo no presente...


Rui Diniz

02 fevereiro, 2007

O teu Tejo

Consigo agora saborear o doce Tejo
como a um milagre.
Confundo suas águas com a tua pele;
nas algas curtas que nele se banham
vejo o teu cabelo risonho...

Um barco passa, um sorriso teu;
o rasto que transpira
é o ajuste na tua face quando me olhas
feita Lua.
Tu mostras-me a Lua de todas as cores,
todos os tons
todas as indiferentes diferenças
que me ensinas a ver...
mesmo no cinzento de um céu nublado...

E perco-me na tua imagem...
Alcanço contigo a outra margem!

O Sol vai-se escondendo atrás de ti,
o Tejo leva ao Mar o teu beijo,
para se perder na tua foz arrepiada,
como eu, quando embriagado no desejo
de te dar a madrugada...

A luz da doca mistura-se
com o arrepio da tua lingua em meu suor...
A boia baloiça num movimento ritmado,
como quando me fundo em ti
e na Estrela brilhante
que te habita
a Alma...


Rui Diniz

28 janeiro, 2007

Grito Desprezado

Quando eu nasci
ninguém me perguntou
se queria viver aqui.
Prometeram-me felicidade
a troco da vontade
em obedecer a quem não sou!

Entrei no mundo pela calada,
ao princípio de uma noite
ordenada...
por aqui fiquei
e aceitei
que a minha vida não é nada!

Pus-me de joelhos perante autoridades
sem então saber que vontades
as comanda!
Acolhi as vossas verdades!
Fiz minha a vossa demanda!
E continuei com nada!

É por isto que a solidão me invade!
A solidão de quem está cercado
sendo soldado
numa guerra sem piedade!
Guerra em nome da consciência!
Da decência!
Da evidência!
Da essência!...
Guerra contra o perigo
da vossa urgência
em trazer de novo
o Mundo Antigo!

Querem o Quinto Império
em nome de um Deus que vos sorriu?
Pois levem o Império
para a puta que vos pariu!
Quero lá saber se estou bêbedo e cansado!
Não me tivessem lançado ao rodopio!
Mesmo que venha a ser um mal-amado
e para vós, doentio,
lanço o meu grito desprezado!

Hoje estou fodido!...
E se não gostarem do vocábulo,
mudem-lhe o sentido,
mas eu não fico no estábulo!...
Como sou eu quem este poema vos traz,
e estou fodido,
se não gostarem do que digo,
deixem-me em paz!


Rui Diniz

22 janeiro, 2007

Pátio Gaivota

A fotografia é de autoria da Alexandra Gil. Pode ouvir a minha declamação (desta vez caseira) deste poema, aqui: Pátio Gaivota



Apercebo-me que estou perto.

Um arrepio atravessa-me.
Há muitos anos não estou tão próximo
deste lugar incerto.
Saí de casa um menino,
procurando a lucidez
entre o sábio e o divino,
encontrando na viagem,
nitidez.
Ali está ela,
a casa do canto,
com a mesma porta...
e à volta dela
o mesmo encanto,
do perdido Pátio Gaivota...
Nos vasos, outras flores,
no ar, já sem o veneno
das passadas dores,
transpira um trapo
mais sereno...

A porta abre-se,
revela uma criança de sorriso ardente,
o mesmo sorriso ingénuo
agora de mim tão ausente!
É filha de alguém feliz!
Refugio a vergonha
por detrás de um cigarro,
e quando de lá dentro alguém diz
"Cuidado com algum carro!"...
a criança sonha!
O infante brinca indiferente,
alheio à minha tortura,
infligida pela lembrança
da negrura
desse Pátio Gaivota
do meu tempo de criança!
E este olhar pungente
o meu saber não enxota!
A criança passa correndo
e sou eu que vou lá,
brincando,
ardendo,
sonhando,
perdendo,
fumando,
esquecendo...
que a criança sofrendo,
afinal,
já lá não está.


Rui Diniz

14 janeiro, 2007

Quando Eu Morrer

Usufruindo das soberbas capacidades técnicas do Estúdio Raposa e da mestria e sapiência como produtor do Luiz Gaspar, gravei a minha declamação deste poema. Ouça-a aqui, enquanto o lê: Quando Eu Morrer


Quando eu morrer...

Morre o filósofo e o poeta,
morre o homem da caneta.

Morre o jovem e o idoso,
morre o pensante perigoso.

Morre o músico vacilante,
morre o nobre viajante.

Morre o intrépido cavaleiro,
morre o tímido prisioneiro.

Morre o charmoso galã,
morre o menino da mamã.

Morre o monstro condenado,
morre o mestre iluminado.

Morre um corpo que figura
esta Alma que perdura!

Morte!

A metáfora suprema,
a mudança de cena.

A destruição da evidência,
a afirmação da existência.

A sensação de liberdade,
a desilusão da saudade.

A podridão da biologia,
o alimento da maioria.

A promoção do lamento,
a suspensão do sofrimento,

O elemento indiferente,
o momento convergente!

Por isso,
quando eu morrer...

cantem Bécaud!
Inundem-se com a canção que vos dou
cheios da vida que vos compete:

"Quand Il est mort le poéte..."


Rui Diniz

08 janeiro, 2007

Sinto-me Só

Sinto-me só,
como quaisquer magos;
Como qualquer Rei com um só olho
num mundo de cegos;
E só me sinto,
mesmo não estando na verdade;
mas não se escuta o som das vozes
que deviam encher as plateias
do re-despertar da Humanidade!
Sim! Onde está o calor das gnoses
que nos podiam aquecer ideias
ante a glaciação da realidade?

Que passos demos nós,
em prol da consciência,
se essa consciência a que pertencemos
só nos dá a noção da força que não temos?
E sinto-me só! Sinto-me só e com frio!
Sinto os meus pensamentos congelar no hipnotismo
de uma existência na nossa mente forçada,
e dominada, no materialismo!
Seres poderosos feitos tão fracos,
transformados de transparentes em opacos
com apenas uns anos no delírio
de serem trapos!

Que mortes vos esperam mentes inúteis?
Talvez tão inúteis como a minha,
talvez ainda mais fúteis;
se adoradores da Rainha.
Sinto-me só convosco, meus amores,
que vos amo a todos ainda
e aí sim, como nos programas,
talvez para sempre o sinta.
Assim é, não sei mais como vos diga;
sinto-me só;
aprisionado entre a fadiga
e o nó!

Peço-vos,
aos que despertam no perigo,
vençam os medos!
Peguem nas fundas!...

E partilhem comigo:
segredos
e perguntas!...


Rui Diniz